O Brasil espera que a política ofereça alternativas para o eleitor escolher com base na qualidade das propostas
A inelegibilidade de Bolsonaro revela dois perdedores: as forças da direita, porque perderam a possibilidade de apresentar a ilusão do mito a seus eleitores; e as forças de esquerda, porque perderam a chance de apresentar o monstro para assustar aos eleitores que o temem. Lula continua como o favorito, mas terá dificuldade para atrair a chamada terceira via, porque, além de não ter mais o risco do monstro, tem optado por se afastar da frente ampla que lhe deu a pequena vantagem necessária para vencer em 2022. Apesar de trazer o Centrão para o governo, certos gestos e posições tendem a jogar o apoio da terceira via para o segundo turno. Sem perceber que parte desses votarão em candidato da direita que assuste menos do que Bolsonaro.
A inelegibilidade enfraqueceu a direita, ameaça a esquerda, mas não parece beneficiar o centro, porque ele continua inexistente: dividido em forças antagônicas, sem proposta capaz de convencer o eleitorado, nem nomes para vencer o carisma de Lula e a força do PT. Ciro Gomes segue ameaçado pelo peso que carrega nos próprios pés, além de se manter preso nostalgicamente a ideias econômicas de tempos passados. Os demais candidatos do centro são identificados com a direita, ou já se entregaram ao governo do PT. A esperança é que o desaparecimento do mito e do monstro permita superar a polarização e a armadilha do imediato e force os políticos e partidos a buscarem aglutinar e empolgar a população com ideias que o país precisa para administrar o presente e para indicar um rumo para o futuro.
Os juízes declararam a inelegibilidade, mas não preencherão o desafio que aflorou: formular propostas alternativas e apresentar candidatos que as represente, levantando as bandeiras necessárias à construção do Brasil sustentável, democrático, justo, sem corrupção. Há décadas, as eleições presidenciais têm sido entre os candidatos e siglas, sem discussão sobre os rumos reais para o país. As perguntas eram “como tirar voto do opositor” e “como trazer voto para seu lado”. Não era “para onde e como liderar o país”. O mito ajudava a atrair, o monstro ajudava a tirar votos. Livre de mito e de monstro, pode-se esperar que a campanha eleitoral tente responder a perguntas substanciais que indiquem para onde levar o Brasil em nosso rumo ao futuro. Interessa saber:
Como garantir a manutenção, enquanto necessária, do Bolsa Família, mas apresentando estratégia e prazo para que nenhum brasileiro saudável precise de ajuda para a sobrevivência da família? Quem apresenta propostas para proteger as florestas, ao mesmo tempo que apresenta um Plano de Metas para aproveitar a janela de oportunidades da nova industrialização baseada na diversidade natural e nas possibilidades da economia digital? Quem será capaz de provocar debate de ideias, propostas e reformas mantendo abertura respeitosa ao debate com opositores?
Como levar adiante o programa de alfabetização aos seis anos, mas dizer também como construir um sistema nacional em que todas as criança, não apenas as ricas, sejam bilíngues, e todo jovem brasileiro conclua o ensino médio plenamente alfabetizado para o mundo contemporâneo, sabendo bem português, sendo fluente em outros idiomas, conhecendo ciência, matemática, geografia, história, dispondo de um ou mais ofício profissional para ter emprego e renda? Quem vai denunciar os bloqueios contra países soberanos, mas sem relativizar os autoritarismos que eles pratiquem? Quais candidatos vão nos apresentar o compromisso de fazer gastos sociais e investimentos em infraestrutura sem abrir mão da responsabilidade fiscal e conseguindo equilibrar as contas públicas? Quem vai aceitar as posições do Poder Judiciário de desfazer a Lava Jato, mas vai dizer como vacinar seu governo e o país contra a vergonha da corrupção? Como manter o respeito aos direitos humanos, ao mesmo tempo que pacifica o país engolfado há décadas em uma violenta guerra civil? Quem vai oferecer incentivos para promover nossa indústria, sem proteger a ineficiência?
Em 2018, uma decisão jurídica tirou Lula da disputa, em 2026, outra tira Bolsonaro. O Brasil espera que a política assuma a responsabilidade de oferecer alternativas para o eleitor escolher com base na qualidade das propostas, não por ilusão de mitos ou medo de monstros. (Correio Braziliense – 11/07/2023)
Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)