Editorial Estadão: O pobre é só pretexto

Depois de sua aprovação em dois turnos pela Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 23/21, que limita o pagamento dos precatórios e altera as regras do teto de gastos, foi encaminhada ao Senado. A expectativa do governo é de que seja analisada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) na semana que vem. Se a proposta original já era um escândalo – sem fazer o dever de casa, o Executivo federal deseja institucionalizar o calote –, a cada dia acrescem-se novos contornos de irresponsabilidade e de oportunismo eleitoral.

De cara, a PEC dos Precatórios é antirrepublicana. O governo Bolsonaro deseja uma autorização para não cumprir obrigações reconhecidas pela Justiça. Durante o fim de semana, o presidente Jair Bolsonaro tratou uma vez mais o tema com inexatidão e irresponsabilidade. “O que é a PEC dos Precatórios? São dívidas que remontam 30, 40 anos, e que de repente o STF falou que nós temos que pagar de uma vez só”, disse.

Não foi de repente, tampouco foi o Supremo quem decidiu que o governo tem de “pagar de uma só vez”. Todos – pessoas físicas ou jurídicas, de direito privado ou público – devem cumprir as obrigações reconhecidas pela Justiça. A manobra agora tentada pelo governo Bolsonaro (mudar a Constituição para não ter de pagar o que deve) afronta a segurança jurídica e prejudica o ambiente de negócios. Quer mudar as regras do jogo depois de o jogo já ter terminado.

A PEC 23/21 é uma evidente irresponsabilidade, a merecer imediata rejeição. Para se tornar menos indigesta, o governo federal atribuiu-lhe suposta finalidade social. Segundo o Palácio do Planalto, o calote dos precatórios, combinado com o abandono da regra fiscal relativa ao teto de gastos, seria medida necessária para o pagamento do programa de transferência de renda para a população carente.

A pretensa finalidade social da PEC dos Precatórios foi desmentida várias vezes por especialistas em contas públicas, que apresentaram alternativas para a continuidade do programa social, sem precisar abandonar o teto de gastos. No entanto, o governo federal não se interessou por esses outros caminhos, uma vez que não dariam a Jair Bolsonaro precisamente o que ele mais almeja.

Com a PEC dos Precatórios, o presidente Bolsonaro não quer dinheiro para pagar o Bolsa Família (ou o Auxílio Brasil). Se fosse para isso apenas, não precisaria alterar as regras constitucionais. O objetivo do governo federal é ter autorização para realizar no ano que vem – ano de eleições – outros gastos, eleitoralmente interessantes. No mês passado, veio à tona a articulação, por parte de alguns deputados, para que a aprovação da PEC 23/21 permitisse aumentar o Fundo Eleitoral de R$ 2 bilhões para R$ 5 bilhões, além de incluir emendas de relator no valor de R$ 16 bilhões.

Agora, a execução dessa modalidade de emenda foi suspensa por decisão do Supremo. Mas a questão de fundo permanece. Com o discurso de que é preciso ter dinheiro para programa social, tenta-se ampliar as verbas para outras finalidades. Algumas delas são tão escusas, tão pouco transparentes, que sua execução foi barrada pelo Judiciário.

E o descaramento só aumenta. Durante a viagem a Dubai, o presidente Bolsonaro admitiu que o espaço fiscal aberto pela PEC dos Precatórios é muito maior do que o necessário para pagar o Auxílio Brasil e – vejam só – o governo pensa até em conceder aumento ao funcionalismo público. “Dá para atender a população mais carente, dá para atender a questão orçamentária e pensamos até, dado o espaço que está sobrando, em atender até em parte os servidores”, disse.

Este é o governo Bolsonaro: prefere não honrar as dívidas reconhecidas pela Justiça para conceder aumento, em ano eleitoral, a servidor público. E a manobra é realizada sob suposta motivação social. Jair Bolsonaro consegue ser a cabal farsa de suas promessas. Na campanha, vende antipetismo; no governo, entrega a essência do lulopetismo: vale-se dos pobres para seus interesses eleitorais, mesmo que isso destrua o País. (O Estado de S. Paulo – 17/11/2021)

Leia também

Madonna reclama do calor, enquanto gaúchos estão debaixo d’água

NAS ENTRELINHASA catástrofe aproximou o presidente da República ao...

O padrão a ser buscado

É preciso ampliar e replicar o sucesso das escolas...

Parados no tempo

Não avançaremos se a lógica política continuar a ser...

Vamos valorizar a sociedade civil

Os recentes cortes promovidos pelo Governo Federal, atingindo em...

Petrobrás na contramão do futuro do planeta

Na contramão do compromisso firmado pelo Brasil na COP...

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!