É preciso ir além de medidas que estimulem a produção comercial, restrita devido à legislação e ao entendimento dos tribunais (Foto/Reprodução)
Há apenas quatro anos, a extrema direita liderada por Jair Bolsonaro e seus filhos via na decisão técnica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de liberar medicamentos à base de Canabidiol (ou CBD) a senha para mais uma cruzada moral: lavouras de maconha tomariam conta do País. Nada mais obscurantista.
Quatro anos depois, não tomaram. Mas deveriam. Afinal, é a única forma de garantir que medicamentos cheguem aos milhões de doentes que precisam. Com esse entendimento, fomos, ainda como PPS, partido que deu origem ao Cidadania, ao Supremo Tribunal Federal, em 2017.
Desde então, enquanto o País aguarda a decisão do STF, a discussão evoluiu no Brasil, embora permaneça a proscrição da substância e, com ela, a criminalização de quem tem no cultivo próprio para fins medicinais o único meio de aplacar o próprio sofrimento e de entes queridos que sofrem de autismo, síndromes como Dravet, epilepsia e outras.
No mais recente movimento, coube ao governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, nascido como político nas hostes bolsonaristas, sancionar projeto de lei que permite a distribuição pelo Sistema Único de Saúde (SUS) de produtos à base de CBD. Uma prova de que pautas civilizatórias não são de esquerda ou de direita.
Além de São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro e Paraíba avançaram na normatização do cultivo para fins medicinais e do fornecimento dos medicamentos feitos a partir da cannabis sativa. Tal movimento deveria inspirar os demais estados – afinal, há brasileiros à espera de tratamento em todos eles.
Assistimos, ante a inércia do Congresso Nacional e do Supremo, a um movimento de afirmação federativa como há muito não se via. Será preciso, no entanto, ir além de medidas que estimulem a produção comercial ainda muito restrita devido à legislação nacional e ao entendimento dos tribunais.
É por isso que o Cidadania vai reforçar o apelo junto ao STF para assegurar, como sustenta a ação apresentada há meia década, plantio, cultivo, colheita, guarda, transporte, prescrição, ministração e aquisição de Cannabis para fins medicinais e de bem-estar terapêutico, mediante notificação de receita, conforme as normas de saúde pertinentes, sem que tais condutas sejam consideradas crimes.
Superando assim também a posição retrógrada do Conselho Federal de Medicina (CFM), que, desgraçadamente, viu na cloroquina, medicamento ineficaz para Covid, uma bandeira da autonomia médica, mas não enxerga da mesma forma o canabidiol, testado e cientificamente comprovado contra uma série de doenças e prescrito em outros casos para uso compassivo.
Mas se estamos aqui a falar de um medicamento que, por seu preço ainda pouco acessível, beneficia largamente cidadãos brancos de maior poder aquisitivo, não podemos deixar de seguir o caminho natural dessa discussão – o uso recreativo, afinal o preconceito que norteia o CFM é o mesmo que todos os anos manda uma parcela imensa de nossos jovens negros para as masmorras desumanas que são as cadeias e os presídios brasileiros.
Hoje, o que separa na cabeça de nossos juízes e policiais o tráfico do consumo, no caso de pequenas quantidades para uso recreativo, são a cor da pele e o status social do sujeito – o que não significa dizer que homens e mulheres brancas não estejam a enfrentar a mesma situação.
Mas experimente buscar no Google pelas palavras jovem, negro, preso e maconha. São inúmeros os resultados indicando a posse de poucos gramas da planta.
Um deles mostra o mal que estamos a praticar de forma recorrente no País. Lucas Trindade, de Minas Gerais, ficou dois anos preso por tráfico de drogas. Havia sido detido com 10 gramas de maconha. Ficou preso preventivamente, sem direito a julgamento. O Estado devolveu Lucas à família morto, vítima da Covid.
Mas vítima também da inépcia do Poder Público, da iniquidade do Sistema de Justiça, do preconceito e do moralismo mais tacanho que proíbe a maconha, que, por suas características é segura, dada a impossibilidade de óbito por overdose, e libera o cigarro, com todas as substâncias tóxicas e cancerígenas que conhecemos.
Que os estados, no que couber, possam também se afirmar federativamente nessa questão, acabando com o encarceramento em massa de jovens pretos de tão pobres e pobres de tão pretos pelo uso recreativo da cannabis. Enquanto aguardamos, mais uma vez, o STF, que, desde 2015, discute o que é e o que não é posse para uso pessoal.
Passou da hora de dizer que, aí também, somos todos iguais perante a lei. E livres. Se não faz a sua cabeça – como não faz a minha – simplesmente não fume. É como se faz em outros países mais avançados nessa discussão.
Num movimento facilitado pela histórica configuração federativa dos Estados Unidos, 20 dos 50 estados norte-americanos autorizam o uso recreativo e medicinal. Lá, o cultivo legal rendeu mais de US$ 5 bilhão aos agricultores em 2022.
Com maior ou menos regulação, México, Uruguai, Canadá e Holanda, entre outros, seguem a mesma linha. Portugal descriminalizou as drogas ainda em 2001.
Nações e modelos que podem e devem servir de inspiração para o Brasil.
Roberto Freire