Benito Salomão: Tributação e modernidade

Ainda sob os danos de uma crise sanitária que está prestes a ceifar a vida de 550 mil brasileiros e às vésperas de um ano eleitoral que promete ser o mais duro dos últimos 35 anos, o Congresso brasileiro mergulha em reformas econômicas desconectadas do contexto sanitário e de uma estratégia mais ampla de desenvolvimento do país. Um exemplo disso é a proposta de reforma do imposto de renda que tramita na Câmara via PL 2337/21.

Antes de adentrar nos aspectos mais técnicos da supracitada reforma, é preciso se ater às questões políticas, igualmente importantes. Sobre isso, duas questões deveriam ser respondidas: i) Por que uma reforma do Imposto de Renda, seja ela boa ou ruim, precisa ser aprovada agora e não pode esperar até 2023, de forma que seja objeto de debate público e eleitoral e tenha a legitimação do eleitor? ii) Qual a possibilidade de um modelo tributário bem-feito sair de uma reforma fatiada, isto é, aprovada em etapas, sem estabelecimento claro do que é prioridade e do que é secundário? Aliás, qual o critério de prioridade de uma reforma tributária aos moldes do que tramita na Câmara? Por que o Imposto de Renda e, não, a unificação de impostos indiretos em um único IVA?

As respostas para tais questões devem ser dadas pelas autoridades empenhadas na aprovação dessa reforma, mas algumas considerações devem ser feitas. Em relação à primeira questão, a aprovação de uma reforma por um governo impopular, cuja capacidade de reeleição é baixa e em um período próximo das eleições, pode fazer com que o assunto volte à baila política a partir de 2023, sobretudo se a atual oposição vencer as eleições. Em outras palavras, os açodamentos para aprovação de uma medida de tamanho impacto pode levar o próximo governo eleito a revisitar o assunto e reformar a reforma. Melhor seria que o parlamento tivesse gastando esse capital político para aprovar medidas emergenciais para lidar com a crise sanitária que ainda mata muitos brasileiros.

Em relação à segunda questão, há fatores mais técnicos envolvidos sobre os quais é preciso empenhar maior atenção. Um regime tributário deve se pautar por alguns princípios: i) simplicidade, ou seja, passível de ser compreendido pelo contribuinte, ii) progressividade, o que significa que os impostos devem recair em maior volume sobre contribuintes com maior capacidade de pagamento e, iii) eficiência, isto é, o sistema tributário não pode causar ineficiências no sistema econômico, criando incentivos à sonegação, ao planejamento tributário e, principalmente, à alocação subótima dos recursos na economia.

O primeiro problema do projeto em trâmite é que ele não traz ganhos adicionais em nenhum dos princípios listados acima. Pelo critério da eficiência, uma reforma do IVA parece que traria mais ganhos à economia como um todo, pois unificaria vários impostos indiretos em um único imposto a incidir sobre valor agregado, impedindo, por exemplo, a tributação em cascata nas várias etapas das cadeias produtivas que minam a eficiência do sistema. Pela mesma razão, tal reforma não parece tornar o sistema tributário mais simples, pelo contrário, todas as mazelas do atual sistema, que o tornam excessivamente complexo e criam um elevado contencioso tributário, não são tocadas pela reforma.

Finalmente, no que se refere à progressividade, as melhoras são tímidas e poderiam estar incorporadas em uma reforma tributária mais ambiciosa. Resolver o problema da regressividade da carga tributária no Brasil requer um olhar especial quanto aos impostos sobre patrimônio, que, por sua vez, são constitucionalmente delegados a estados e municípios como IPVA, ITR e IPTU, respectivamente.

Dois problemas adicionais devem ser levados em conta em uma reforma tributária. Ela deve estar associada a um contexto de crise fiscal e estagnação do crescimento econômico ao qual o Brasil está submetido há quase uma década. Em outras palavras, o modelo tributário deve estar alinhado com objetivos da política macroeconômica, que não estão claros neste governo. Como uma reforma dessa natureza pode contribuir com o reequilíbrio das contas públicas e, ao mesmo tempo, não penalizar ainda mais a exaurida capacidade de crescimento da economia brasileira? Lembrando sempre que no Brasil o que determina o tamanho da carga tributária é exatamente o tamanho do gasto público. Apenas para que fique claro, o modelo tributário atual é ruim, precisa, sim, ser reformado, mas para tudo existe um tempo e um contexto. É preciso estabelecer, primeiro, as diretrizes macroeconômicas do país, em seguida vem a escolha dos instrumentos para alcançá-las. (Correio Braziliense – 27/07/2021)

Benito Salomão, economista do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal de Uberlândia (PPGE-UFU)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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