Felipe Salto: O andor cambaleia e o santo é de barro

O ímpeto gastador vem do governo, que já discute dar reajustes ao funcionalismo

A economia brasileira não está melhorando de verdade. A alta dos preços das commodities caiu do céu como um amargo maná: esconde a precariedade do mercado de trabalho e da renda das famílias. Pior, dá vazão à sanha por aumentos de gastos não relacionados ao essencial, isto é, guarnecer as famílias que perderam emprego e renda na pandemia e pavimentar a reconstrução do País.

Os governos têm o condão de definir políticas públicas de saúde, educação, meio ambiente, infraestrutura, combate à pobreza, etc. Mas desta vez o vento de cauda oriundo das commodities encontrou uma nau sem rumo. Acabamos de assistir à confusão no Orçamento de 2021. No ano que vem, a ajuda camarada da inflação vai abrir uma folga no teto de gastos em pleno ano eleitoral.

A Instituição Fiscal Independente (IFI) estima que o produto interno bruto (PIB) crescerá a 4,2% em 2021, podendo alcançar 5,4% no cenário otimista. Esse crescimento ocorrerá em cima da recessão de 4,1% em 2020. No biênio, mesmo com a taxa otimista, cresceremos a 0,5% ao ano, abaixo da média de 1,5% entre 2017 e 2019. O Brasil está semiestagnado. Sem um plano nacional coeso, permanecerá assim.

De fato, a alta dos chamados termos de troca – razão entre os preços das exportações e das importações – reflete a dinâmica positiva dos produtos primários. Mais de dois terços das exportações do País são commodities. Na comparação entre março deste ano e o mesmo mês de 2020, os termos de troca aumentaram 20%.

Essa ajuda externa estimula o agronegócio, que cresceu a 5,7% no primeiro trimestre de 2021 em relação ao último de 2020, enquanto a indústria subiu apenas 0,7%. Contudo os preços das commodities já atingiram o pico de 2011 e a duração do ciclo é incerta. Como naquele samba, “nada dura eternamente, tudo na vida é ilusão”.

No meu artigo anterior nesta página mostrei que o PIB em trilhões de reais tem sido ajudado pela inflação. Quase 70% do aumento nas projeções para o PIB nominal de 2021 se explicam pela inflação maior. Matematicamente (pelo denominador mais alto), a relação dívida/PIB deverá diminuir, mas seguirá 30 pontos porcentuais superior à média dos países em desenvolvimento. O dólar caro está por trás.

Recentemente, o dólar começou a baratear, o que poderá retirar pressão da inflação. Depois de atingir quase R$ 5,90, no início de março, a taxa de câmbio está em torno de R$ 5,10. Mas há incertezas até o fim do ano. Se o Federal Reserve – o banco central dos EUA – sinalizar aumento de juros para antes do previsto, os dólares que circulam no mundo voarão para lá. Nesse caso, o Banco Central do Brasil terá de aumentar ainda mais os juros para conter a desvalorização do real.

Vamo-nos entender: quando o dólar fica mais caro, os preços dos produtos importados em reais aumentam. Então, elevam-se os juros para manter a atratividade ao capital estrangeiro e segurar a taxa de câmbio. Busca-se evitar o espalhamento desse efeito na economia. Mas o juro mais alto é água no chope da recuperação do PIB, além de encarecer a dívida.

Os riscos macroeconômicos somam-se ao avanço da covid-19 e ao desemprego, que deve encerrar o ano em 14,2%. Em 2021 a ocupação crescerá a 2%, depois de ter caído quase 8% em 2020. A renda é corroída pela inflação. A saber, os preços da alimentação no domicílio subiram 15,4% no acumulado de 12 meses até maio.

Nesse contexto, irrompe a sanha para gastar a folga prevista no teto de gastos em 2022, como eu previ à jornalista Adriana Fernandes no Estado de 19 de abril. A inflação mais alta até junho de 2021 – índice a corrigir o teto do ano que vem – fará o limite crescer acima das despesas obrigatórias em 2022. Mas essa folga não está garantida. Ao contrário, dependerá da inflação até dezembro de 2021.

O ímpeto gastador vem do próprio governo, que já discute dar reajustes ao funcionalismo. Sou a favor de elevar o Bolsa Família ou de discutir a sério um programa de renda básica nos moldes propostos há anos por Eduardo Suplicy. Para isso seriam necessários planejamento e debate técnico.

Usar o espaço fiscal gerado pela inflação descompensada para dar reajuste salarial em ano eleitoral é o fim da picada. O sinal é péssimo e alimenta as expectativas de inflação, turbinando os juros. Enquanto isso, comemora-se a “redução” da dívida e o PIB inflacionado. O andor cambaleia e o santo é de barro.

FHC, 90 anos – O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso completou 90 anos no dia 18 de junho. FHC implantou o Bolsa Escola, propôs e aprovou a reforma gerencial do Estado, controlou a inflação com o Plano Real, reorganizou as contas públicas por meio da Lei de Responsabilidade Fiscal, universalizou o acesso à educação básica, ampliou e reforçou o Sistema Único de Saúde (SUS) e desenhou uma política externa estratégica, que reposicionou o País no mundo. O “improvável presidente”, como no título de um de seus livros, inspira as novas gerações. Seu farol alto estimula a reflexão sobre a reconstrução do País pós-Bolsonaro. Parabéns e obrigado, FHC! (O Estado de S. Paulo – 22/06/2021)

FELIPE SALTO, DIRETOR EXECUTIVO E RESPONSÁVEL PELA IMPLANTAÇÃO DA IFI. AS OPINIÕES NÃO VINCULAM A INSTITUIÇÃO

Leia também

O padrão a ser buscado

É preciso ampliar e replicar o sucesso das escolas...

Parados no tempo

Não avançaremos se a lógica política continuar a ser...

Reforma tributária será novo eixo da disputa política

NAS ENTRELINHASSe a desigualdade é grande e a riqueza...

Vamos valorizar a sociedade civil

Os recentes cortes promovidos pelo Governo Federal, atingindo em...

Petrobrás na contramão do futuro do planeta

Na contramão do compromisso firmado pelo Brasil na COP...

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!