Paulo Siqueira: Lembrai-vos de 35

No que vai resultar esse movimento golpista que culminou na arruaça de 8 de janeiro?

“A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto, exatamente nessas épocas de crise revolucionária, eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado.”

Karl Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte

O filme “Glória Feita de Sangue” (Stanley Kubrick, 1957) é um filme realizado na época em que o realismo naturalismo chegava em Hollywood através do Actors Studio (Stella Adler e Lee Strasberg) cujo o maior ícone foi Marlon Brando, e que foi buscar no teatro russo pré-revolucionário (Constantin Stanislavski) suas referências, de realismo revolucionário na dramaturgia. Com atuação clássica de Kirk Douglas (Coronel Dax), filmado em preto e branco, se passa na Primeira Guerra Mundial, 1916, quando o General Mireau (George Meeker) por vaidade e ambição, resolve tomar o Monte Formiga, uma tarefa quase impossível, mas apesar de alertado pelo alto comando, Mireau faz valer sua vontade e, claro, o ataque fracassa, enfurecido e com orgulho ferido, o general ordena que a artilharia bombardeie suas próprias linhas, mesmo assim, há debandada geral. Mireau então, por uma questão de honra, exige que cada pelotão envolvido aponte um homem pra ser fuzilado por covardia. Dax tenta defender seus subordinados num julgamento de cartas marcadas. O alto comando francês fuzila os três como um “cascudo de ferro” para disciplinar as tropas. Após isso, discretamente, Mirau é transferido por sua total incapacidade comprovada, mas o que o filme contrasta bem é a diferença de tratamento e punição entre os soldados e os altos oficiais.

Não costuma ser muito diferente ao redor do mundo, inclusive no Brasil, que ao longo de sua história viu oficias se insubordinarem e até promoverem golpes de estado, numa escalada crescente desde o início do movimento nas casernas pela república, até hoje em dia, em que um coronel xinga as mães dos generais em video que ele mesmo fez questão de publicar nas redes. Em 1935, a Aliança Nacional Libertadora se lançou numa aventura militar, provocada por um levante inesperado em Natal, do 21o Batalhão de caçadores Exército, devido à questões locais, quando militares alienistas, ou prestistas foram expulsos. O PCB aderiu ao movimento, deflagrando o levante no Rio de Janeiro e em Pernambuco. O movimento saiu caro para o partido, para a democracia brasileira que arriscava seus primeiros passos, e para todo o país que se viu dois anos mais tarde mergulhado em sua mais cruel ditadura, o Estado Novo. A bem da verdade, já havia um projeto desenhado pela Comitern, no qual o partido estava envolvido de provocar uma revolução, a qual se daria provavelmente em 1936, mas o levante de novembro de 1935, foi uma inciativa inesperada por todos. Desse erro terrível, o partido aprendeu e começou seu longo caminho para a defesa da democracia, que se concluiu com a criação do PPS, hoje Cidadania. Nossa veia revolucionária foi comutada pela defesa radical da democracia e das liberdades, e hoje, vemos uma direita radical anti-sistema, que não passaram pelo nosso aprendizado.

Nossa tradição ibérica nos trouxe um fetiche pelo militarismo, somado ao milenarismo português que culmina com o sebastianismo do século XVI, junto ao início de sua decadência. Este milenarismo impulsionou a reconquista portuguesa que durou dois séculos, e depois as navegações, ainda com a visão cruzadista de encontrar o reino mítico do rei Preste João e assim, chegar ao oriente e isolar até derrotar o islamismo. No século XVIII, o Marquês de Pombal declara que o Brasil é o futuro do reino de Portugal, e assim nasce a idéia do país do futuro que chega até hoje. O milenarismo chega às academias militares com o positivismo no século XIX e alimenta o tenentismo no início do século XX. Desse movimento derivam duas utopias milenarista, o comunismo nacionalista que se espalha pela baixa oficialidade e o integralismo, que ganha adeptos na alta oficialidade, e consequente simpatia pelo fascismo. Os movimentos militares atravessam o século XX com golpes, lutas armadas, marchas e revoluções. Após os anos 50, esquerda e direita milenaristas se reencontram no nacional-desenvolvimentismo, projeto de desenvolvimento nacional que mobilizou a ditadura militar e contou com apoio, inclusive de liberais, sendo que Roberto Campos desenhou a política econômica, fiscal e monetária do início da ditadura e lhe serviu até o fim desta.

Nosso sebastianismo se desenvolveu na visão autoritária de estado, cuja a missão é o desenvolvimento nacional, sempre na busca de figuras carismáticas capazes de em aliança direta com o povo, governar por cima de interesses políticos e até da classe política e das instituições da república. Em 1934, os tenentes clamavam pra Getúlio: somente uma ditadura poderá realizar o que o país precisa. Esse projeto nacional encontrou eco na personagem de Bolsonaro, de origem militar, carismático, autoritário, firme e forte, cuja aliança com evangélicos, lhe rendeu uma aura mítica, de escolhido por Deus com missão de salvar o país.

A democracia brasileira viveu seu desgaste após duas décadas de governos sociais-democratas, recheados de denúncias de corrupção e crise econômica, com perda de qualidade de vida, insegurança tanto pessoal, quanto econômica, novas relações de trabalho e trocas, novos valores, e novas formas de fazer política, com as redes alçando ao estrelato, anônimos e novas “verdades”.

Com a derrota eleitoral apertada de Boslonaro, a insatisfação de grande parte da população, a qual não aceita Lula ou o PT, sendo estes, os elementos de instabilidade nesse início de governo, abraça antigas práticas golpistas, repudia as instituições democráticas e da república como a justiça, a constituição de 1988, os parlamentos, as leis “frouxas” para bandidos e corruptos, os costumes e “tudo o mais que está aí”, e em especial, o antigo anticomunismo, agora anacrônico, mas que serve de insumo para narrativas, entre elas a volta da figura de linguagem dos anos 50, os militares melancia, aqueles verdes por fora, ou seja patriotas, mas vermelhos por dentro, comunistas.

Ao fim do segundo turno, inicia-se um movimento de repúdio ao resultado eleitoral, negando sua legitimidade, que se desenvolve para pedir aos generais pelo golpe, cada hora usando um termo diferente como: art. 142, GLO, intervenção militar, intervenção federal, estado de sítio, golpe; no que, ignorados pelo alto comando, voltam-se contra os generais, agora considerados melancia, e fazem apelos aos coronéis, onde encontram mais eco, mais empatia. Desde 2017/18, vemos coronéis, inclusive das polícias militares, fazendo vídeos agressivos contra o sistema democrático brasileiro, contra a justiça e o congresso, com a eleição de Bolsonaro, esses se acalmaram um pouco, mas agora, com a derrota nas urnas, voltaram se insuflar, e já ganham coragem para pedir golpes e até ofender generais.

A hierarquia é um elemento sagrado na vida militar, não sabemos como o alto comando irá tratar isso, pela tradição, baixa oficialidade vai pro fuzilamento (figurado, claro) e alta patente se resolve discretamente. Lembremos que os coronéis de hoje, serão os generais de amanhã, como os coronéis de 1954, eram os generais de 1964. O projeto nacional autoritário ainda rega corações e mentes da esquerda, da direita e da caserna.

Nos seus discursos, após o 08 de janeiro, Lula enfatizou o papel do PT e da esquerda na história do país, acirrando mais ainda a polarização, afinal os ataques contra a democracia não são contra a esquerda, mas contra a sociedade brasileira, sendo esta plural. Há muita água pra rolar ainda, hoje a direita tem várias lideranças de expressão nacional: Bolsonaro, dois de seus filhos, sua esposa Michele, Mourão, Moro, Tereza Cristina, Tarcísio, Zema, Damares, e a esquerda tem… Lula. A terceira via está no governo Lula: Simone, Alckmin, Marina, PDT, União Brasil. O Cidadania encolhido no parlamento, em dificuldades de rumo, organização e projeto, terá a árdua tarefa de trabalhar em prol da democracia, o que significa defender as interdições democráticas, os poderes legalmente constituídos o que significa Lula na presidência e o congresso que tomará posse em fevereiro, além do STF atual; trabalhar por uma alternativa, cada vez mais estreita à polarização, e talvez, essa alternativa tenha que vir, do próprio governo, visto que a terceira via, como foi dito, está lá.

No que vai resultar esse movimento golpista que culminou na arruaça de 8 de janeiro? Difícil prever, mas dificilmente irá desaparecer, periga até radicalizar e certos elementos partirem pra clandestinidade com ataques terroristas e até luta armada, mas não são eles a tônica do que está por vir. Quanto mais radicalizarem, melhor pro governo de ocasião do ponto de vista político, mas, um alerta, instabilidades políticas costumam gerar instabilidades econômicas, e hoje Lula enfrenta um orçamento curto, a necessidade de recuperar o salário e a dificuldade de aumentar impostos ou ate voltar com a tributação dos combustíveis.

Paulo Siqueira

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