Reinaldo Azevedo: Pregação golpista não é mais apito de cachorro, mas ataque dos cães

Ninguém tem o direito de duvidar de que Jair Bolsonaro e alguns outros extremistas com ou sem farda, de uniforme ou de pijama, estão se preparando para tentar golpear as eleições caso Lula vença a disputa. Os sinais estão em toda parte.

Não se trata de ilações oriundas de maquinações conspiratórias. Como sempre acontece desde a fábula do lobo e do cordeiro, os argumentos não têm importância, só os pretextos. Os outros pré-candidatos vão ou não defender a ordem legal? Já não se trata de combater o “apito de cachorro”, mas o ataque dos cães.

A intimidação se adensa de forma escancarada. No Rio Grande do Norte, o dito “Mito” associou a população armada ao resultado das urnas. Em caso de vitória do “mal” —e ele se refere obviamente ao candidato petista—, então cumpre, nas suas palavras, dar “até a vida”, necessariamente a dos outros, pela “nossa (deles!) liberdade”. A liberdade de rasgar a Constituição, a exemplo de 1964.

O golpe, note-se, foi exaltado por Braga Netto, dublê de general da reserva, ministro da defesa e pré-candidato a vice na chapa do “capitão”, numa Ordem do Dia que, dadas essas circunstâncias, entra para a história como uma das peças mais desavergonhadas da República em razão das mentiras que conta, das conclusões a que chega e das ameaças que embute.

Numa passagem particularmente sórdida, ele insere a “anistia ampla, geral e irrestrita” como uma das conquistas da ditadura, como se os anistiados não fossem personagens que a própria quartelada engendrou, fossem vítimas, fossem algozes. Parafraseando com ligeira torção música de Chico Buarque, este senhor se jacta da invenção do perdão para os pecados que eles mesmos inventaram. Lixo!

Cumpre prestar atenção ao fim da Ordem do Dia, que reproduzo: “Cinquenta e oito anos passados, cabe-nos reconhecer o papel desempenhado por civis e por militares, que nos deixaram um legado de paz, de liberdade e de democracia, valores estes inegociáveis, cuja preservação demanda de todos os brasileiros o eterno compromisso com a lei, com a estabilidade institucional e com a vontade popular.” Dispenso-me de vomitar sobre a suposição de que o AI-5, por exemplo, garantiu o regime de liberdades.

Atenho-me ao anunciado compromisso “com a vontade popular”. O texto veio à luz no mesmo dia em que o presidente voltou a associar as urnas eletrônicas a fraudes e a povo armado. O círculo se fecha com tenebrosa clareza. Em 1964, pretextando-se o risco do “avanço de uma ideologia totalitária”, rasgou-se a Constituição em nome do “fortalecimento da democracia” (as aspas são uma cortesia de Braga Netto). Em 2022, bastaria anunciar que as urnas eletrônicas não refletem o que os armados consideram a “vontade popular”. E pronto!

Um presidente não tem três comandantes do Exército em menos de quatro anos —jamais as Forças Armadas estiveram tão presentes no governo e foram, a um só tempo tão humilhadas!— se está com boas intenções. Os tolos aqui e ali tentam buscar também no STF a responsabilidade pela tensão. Mentira e cretinismo. Dias Toffoli abriu de ofício o inquérito das “fake news” antes de se concluir o terceiro mês de governo porque as milícias já estavam em ação.

E agora puxo o fio que larguei lá no primeiro parágrafo. A tal “terceira via” se esboroou, como antevi desde sempre. O nem-nem, a “quimera da dupla negação”, tinha uma falha moral imperdoável —e há o risco de conservá-la em se chegando a algum nome: nunca disse que inegociável mesmo, acima de qualquer outro valor, é a democracia e que, pois, uma composição com o golpista, num eventual segundo turno, é impossível.

E poderia tê-lo feito, mesmo opondo-se ao pré-candidato do PT. Não conseguiu estabelecer a hierarquia entre o inaceitável e o indesejável porque tentou ser, de algum modo, beneficiária da política do “medo do comunismo”, aquele miasma fétido que vem lá de 1964.

Pouco importa quantos sejam os candidatos, convém fazer a Frente Única em favor da democracia. O resto vem depois. “Ah, isso só favorece Lula…” Não é verdade. Mas e se fosse? Contra Lula, vale dar uma piscadela para o golpe? (Folha de S. Paulo – 01/04/2022)

Reinaldo Azevedo, jornalista, autor de “O País dos Petralhas”

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