Míriam Leitão: Cenário econômico piora com a guerra

A guerra turvou ainda mais o cenário do último ano do governo Bolsonaro. O país já estava com a inflação alta e a economia estagnada. Mas agora a esse quadro difícil se somam todos os efeitos da guerra da Rússia contra a Ucrânia, o que levará o país a ter mais inflação, menos crescimento, mais juros. O Copom se reúne hoje e amanhã para subir a Selic em mais um ponto percentual. As projeções são de que os juros vão a 13% este ano, uma taxa enorme para um PIB que pode não sair do zero.

Da última reunião do Copom para cá, os indicadores pioraram, e esta guerra terrível estourou afetando todas as projeções. A inflação está em dois dígitos desde setembro, mas os economistas projetam um recuo este ano. Ainda acham que vai ficar abaixo de 10%, mas a cada dia a estimativa é revista para cima. Na última reunião do Copom, a mediana do Focus apontava 5,38%, agora está em 6,45%. O Credit Suisse divulgou ontem um relatório apostando em 7%. É muito difícil saber, mas o viés é de alta para os preços, e a piora das expectativas já atinge os anos de 2023 e 2024, que começam a escapar do centro da meta.

No ano, o petróleo tipo brent já subiu 36%. E isso porque ontem teve queda. A volatilidade está intensa, ontem abriu em US$ 112 e acabou fechando em US$ 105, mas na semana passada passou de US$ 130. Desde a última reunião do Copom, a alta do petróleo foi de 18%, o preço do trigo na Bolsa de Chicago saltou 44%, o do milho, 19%. Há risco concreto de falta de fertilizantes para a próxima safra e isto já está refletido na disparada dos preços sentida já pelos produtores brasileiros. Enfim, todos esses números mostram que a economia está diante de um choque externo.

O choque atinge uma economia já fragilizada pela pandemia e pelos erros de gestão da crise e do país pelo governo Bolsonaro. Em 2020 e 2021 o dólar subiu 38%, isso se refletiu nos preços e elevou todos os índices. Um exemplo desse desequilíbrio é que as commodities estavam em alta engordando o saldo comercial. Normalmente, quando sobem os produtos que o Brasil exporta, a moeda se valoriza. Aconteceu o oposto no biênio 2020-2021. Só agora houve o movimento natural de queda do dólar com as commodities em alta. Bolsonaro, durante toda a pandemia, brigou com os estados, atacou o Supremo, enfraqueceu os esforços do país no combate ao vírus, fez ameaças de ruptura institucional, sendo o auge em 7 de setembro do ano passado. Isso é parte da história da disparada do dólar no ano passado e dos desequilíbrios na economia. O crescimento do PIB de 4,6% foi recuperação da queda do ano anterior, mas não levou a um novo padrão de crescimento. Mesmo antes da guerra a previsão era de que o PIB cresceria magérrimos 0,3%. Agora a previsão foi revista para 0,5%, por razões estatísticas.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem exaltado a política fiscal do governo Bolsonaro. Argumenta que as contas públicas voltaram ao azul, com o superávit primário de R$ 64 bilhões em 2021. O problema é que quem sustentou esse resultado foram os estados, que registraram superávit de R$ 97,7 bilhões, e não o governo federal, que teve déficit de R$ 35,9 bilhões. Além disso, houve uma forte ajuda da inflação, como mostra estudo da Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Federais (Febrafite). Praticamente todos os componentes das receitas foram turbinados pela alta dos preços. A arrecadação de ICMS subiu pelos combustíveis mais altos, os royalties de petróleo e minério de ferro aumentaram com a disparada internacional, e até produtos industrializados chegaram ao país encarecidos pela disrupção das cadeias de suprimentos. Pelo lado da despesa, o governo congelou salários de servidores em termos nominais por dois anos, por causa da pandemia, mas agora tudo indica que haverá um efeito rebote: reajustes para compensar as perdas nos próximos anos.

— O bom desempenho das receitas guarda forte relação com a alta da inflação em 2021, além do bom momento das commodities e mesmo da desvalorização cambial. No médio e longo prazos, não se pode contar com estes efeitos anabolizantes geradores de bons resultados no curto prazo — afirmou o presidente da Febrafite, Rodrigo Spada.

A guerra traz mais instabilidade para uma economia que já estava com diversos desequilíbrios. (Com Alvaro Gribel, de São Paulo/O Globo – 15/03/2022)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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