O projeto de lei 3723/2019, apresentado pelo Executivo ao Congresso, representa um dos maiores retrocessos
O projeto de lei 3723/2019, apresentado pelo Executivo ao Congresso, representa um dos maiores retrocessos para a repressão ao tráfico de armas e munições e para a redução da violência armada no país. Agindo nos bastidores, grupos pró-armas batem cartão no Senado e apresentam argumentos equivocados para fazê-lo avançar. Desmistifico aqui três deles.
Primeiro: “não é sobre armas, é sobre liberdade”. Ora, é sim sobre armas. E é também sobre a capacidade das autoridades em fiscalizar quem tem acesso a muitas armas e munições, para evitar que criminosos se aproveitem de brechas legais para abastecer o crime organizado. O projeto acaba com a marcação e identificação que garante o rastreamento das armas e munições utilizadas no crime. Sem informações para fazer o rastreamento, as autoridades ficam de mãos atadas para investigar os desvios desses arsenais, incluindo os das próprias forças de segurança. Esses grupos defendem um conceito distorcido de liberdade. Não se trata da liberdade democrática que tem limites estabelecidos pela lei e que é regida pelo bem comum. Mas de uma liberdade reacionária na qual a arma é o instrumento de ameaça para fazer valer a vontade do mais forte. Isso não é liberdade, é tirania.
Segundo: “é preciso garantir a segurança jurídica dos caçadores, atiradores e colecionadores (CACs)”. Alguns dizem que o PL pretende garantir essas atividades —que não estão ameaçadas. As atividades dos CACs são regulamentadas há décadas no Brasil. Por serem categorias com acesso a um grande número de armas e munições e a armamentos mais potentes, controles e critérios eram — e devem ser — proporcionais aos riscos que esse acesso privilegiado a grandes arsenais acarreta. A regulação responsável é muito diferente das medidas propostas pelo PL 3723/2019, que ao invés de estabelecer um limite máximo de aquisição de armas de fogo por essas categorias, estabelece um “limite mínimo” de compra. Na prática, o PL abre a possibilidade, por exemplo, para que atiradores comprem mais do que as 60 armas já permitidas pelos decretos que estão sendo questionados no STF. Quem precisa de segurança jurídica são os militares e policiais que hoje têm o desafio de aplicar o problemático conjunto normativo expedido pelo Governo Federal nos últimos três anos, que só dificulta o controle dos arsenais em posse dessas categorias.
Terceiro: “não se trata de um projeto de segurança pública”. Os resultados da CPI do Tráfico de Armas realizada pelo Congresso em 2006, das duas CPIs realizadas pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro sobre o tema, em 2011 e 2016, e os inúmeros casos investigados e desvendados pelas polícias, mostrando os desvios de armas e munições legais para a criminalidade, são incontestes: o controle de armas e munições por parte das autoridades é central para a segurança pública. O PL 3723/2019 ainda autoriza que os CACs transportem arma municiada, em qualquer horário e trajeto. Na prática, permitirá que os quase meio milhão de CACs hoje registrados possam andar armados pelas ruas do país.
Os impactos negativos dos inúmeros retrocessos no controle de armas e munições serão sentidos por muitas décadas. Esses atos normativos estão sendo contestados junto ao STF e, apesar do estrago já causado, há chance de reversão. O que não podemos aceitar é que o Senado Federal transforme todos esses retrocessos em lei, contrariando o interesse público e o bem-estar e segurança da população. Não se deixem enganar, é isso que o PL 3723/2019 faz. (Folha de S. Paulo – 09/02/2022)
Ilona Szabó de Carvalho, empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”