Em ação protocolada nesta segunda-feira (30), partido diz que jurisprudência criada em tribunais inferiores, diferenciando os dois crimes, não tem base constitucional, contraria a lógica e gera impunidade
O Cidadania, por iniciativa dos setoriais Igualdade 23 e Diversidade 23, ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6987) nesta segunda-feira (30) no Supremo Tribunal Federal para enquadrar a injúria racial como espécie de racismo, o que tornará o crime igualmente imprescritível e inafiançável. O partido quer que o artigo 140, §3º, do Código Penal seja declarado parcialmente inconstitucional, excluindo do texto “os critérios raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, porque a conduta de ofender um indivíduo em sua honra por elemento racial deve ser entendida como o crime de praticar o preconceito por raça”.
O crime de racismo, enquadrado no artigo 20, da Lei 7.716/89, não prescreve e é inafiançável. O Cidadania pede também que a ADI seja julgada em conjunto com o habeas corpus 154.248/DF, em análise na Corte e que trata do mesmo tema. A alegação é de que a jurisprudência criada em tribunais inferiores, diferenciando racismo e injúria racial, não tem base legal, contraria a lógica e gera impunidade, por impedir a punição ao gerar a prescrição ou a decadência dos crimes.
“O indivíduo é ofendido em sua honra subjetiva por motivação racista, por seu pertencimento a grupo racial minoritário-estigmatizado, de sorte que o racismo é ontologicamente inerente ao que se convencionou chamar de injúria racial. Sempre que um indivíduo é atacado, a coletividade é atingida”, diz a peça assinada pelos advogados Paulo Iotti e Soraia Mendes, professora e grande autoridade em Criminologia Feminista e em Processo Penal feminista no Brasil, que fará a sustentação oral pelo Cidadania.
O partido acrescenta que “negros e negras que leem notícias cotidianas sobre violência racial são também atingidos(as) psicologicamente, pois, sabem que podem ser a próxima vítima, seus filhos, netos, netas, irmãos, irmãs estão suscetíveis a sofrer violência concreta sem reparação alguma posteriormente”.
“Considerar a chamada injúria racial como uma ‘injúria não-racista’ inviabiliza não só a efetividade, mas a própria eficácia do repúdio a todas as formas de racismo”, continua o Cidadania, que condena a “repetição acrítica de Cursos e Manuais de Direito Penal dessa diferença sem explicar como se pode seriamente dizer que ofender um indivíduo em sua honra por elemento racial ‘não seria’ uma forma de racismo”.
A ação de inconstitucionalidade
A legenda lembra que o crime de injúria racial, principal via de manifestação do discurso racista, foi criado enquanto espécie de racismo, justamente para impedir a impunidade – embora, na prática, isso não esteja acontecendo – porque era comum que essas ofensas fossem consideradas mera injúria simples ou até mesmo “fato atípico”, isto é, não seriam crimes por não estarem tipificados em lei.
O objetivo da ação é atender esse pleito histórico do Movimento Negro, uma vez que o julgamento do Habeas Corpus 154.248/DF, em curso no STF, embora possa vir a ser um precedente, diz respeito apenas ao caso concreto em análise: uma mulher condenada por racismo no Superior Tribunal de Justiça (STJ) que pleiteia a extinção da pena sob alegação de que injúria racial seria afiançável e prescritível.
“Afigura-se da mais alta relevância sua discussão [o enquandramento de injúria racial como racismo] em sede de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade. Isso porque (…) o habeas corpus (…) vincula diretamente apenas as partes do caso concreto, ao passo que, em ação direta de inconstitucionalidade, a decisão tem força de lei, ante sua decisão ter efeito vinculante e eficácia erga omnes”, sustentam os advogados.
A peça cita estudo das Professoras Marta Machado, Márcia Lima e Natália Neris em que se constatou, analisando mais de 200 acórdãos, que o discurso racista se dá principalmente na forma da chamada “injúria racial”. O trabalho mostra, conforme a peça, que expressões como “preta de merda” e “preta fedida” foram caracterizadas pelo judiciário como “injúria simples”.
“As Professoras citam a grande Sueli Carneiro, na crítica à desclassificação de ofensas racistas a indivíduos a meras injúrias e difamações não-racistas (…) e constataram que a jurisprudência (…), além de exigir ‘intenção propriamente dita’ de ofender, exige ainda uma outra intenção, que ninguém sabe o que é e como se prova, que seria “intenção de discriminação” aliada ao xingamento intencionalmente racista”, pontua o Cidadania na ADI.
Homotransfobia e racismo
Ainda na ação, o Cidadania ressalta que a demanda do Movimento Negro é também reforçada pelo Movimento LGBTI+, uma vez que a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADO) 26, iniciativa do partido, equiparou a homotransfobia ao crime de racismo. “Aliança esta que se daria de qualquer forma, mas também por incidir nos mesmos problemas de tipificação penal”, reforça a legenda, ao registrar que já havia defendido explicitamente que a injúria racial fosse compreendida como espécie deste tipo de crime na referida ADO.
A ADI é apoiada por uma série de movimentos sociais, organizações da sociedade civil e personalidades públicas. O Igualdade 23 articula com setoriais de outras 14 legendas que integram o Movimento Negro Partidário e que também se engajaram na ADI a apresentação de ações semelhantes junto ao Supremo. Na avaliação do setorial, a Corte tem demonstrado convergência com a pauta da igualdade racial.
Um dos exemplos citados na peça protocolada hoje junto ao STF é o do julgamento favorável à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 738, do PSol, no qual a Corte referendou decisão do ministro Ricardo Lewandowski e estabeleceu já para as eleições de 2020 incentivos a candidaturas de pessoas negras, com divisão proporcional de recursos e tempo de televisão.
Segundo o Cidadania, uma decisão de “enfrentamento do racismo estrutural”, tomada “à luz dos valores constitucionais da cidadania, da dignidade da pessoa humana e da igualdade material”.
A retomada do julgamento do HC 154.248/DF está prevista para a sessão desta quinta-feira (2) como o segundo item da pauta do Supremo Tribunal Federal.
Veja abaixo a íntegra da ADI 6987: