Felipe Salto: O assombroso caso do fundo eleitoral

Orçamento público está sob ataque, é preciso reagir. O caminho é o veto presidencial

O descuido com o processo orçamentário revela desapreço pelas instituições democráticas. O dinheiro público deve ser alocado a partir de critérios claros, a exemplo dos princípios da impessoalidade e da transparência. Só assim se pode garantir o financiamento de políticas públicas que melhorem a vida de todos, sobretudo dos que mais dependem do Estado. A recente lambança com o fundo eleitoral é a parte mais aparente do problema. O Orçamento público está sob ataque e é preciso reagir.

A deterioração do processo orçamentário brasileiro tem sido potencializada nos últimos anos. O caso das emendas não identificadas, que já existia, ganhou novas dimensões na presença das chamadas emendas de relator-geral. Para 2021 as despesas da Previdência foram subestimadas em cerca de R$ 15 bilhões a fim de abrirem espaço para novos gastos. O mesmo risco está presente na elaboração do Orçamento de 2022. A diferença é que haverá certa folga no teto de gastos a alimentar a sanha por despesas não planejadas.

Ano a ano, para fugir das regras fiscais se inova na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Esta lei deveria servir para preparar a elaboração do Orçamento propriamente dito, isto é, a Lei Orçamentária Anual (LOA). Na prática, a LDO agigantou-se, abrigando mudanças de regras do jogo que não deveriam ser discutidas ali. É o caso do fundo eleitoral. Criado em 2017, buscou-se suprir a proibição do financiamento empresarial de campanhas. Não custa lembrar, entretanto, que já existe o fundo partidário.

O Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), ou simplesmente fundo eleitoral, foi acoplado à Lei 9.504, de 1997, por modificação aprovada em 2017. A nova regra estabeleceu que a dotação mínima do FEFC deveria equivaler “ao definido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a cada eleição, com base nos parâmetros definidos em lei”. Além disso, esse valor mínimo teria de equivaler a 30% das “programações decorrentes de emendas de bancada estadual de execução obrigatória e de despesas necessárias ao custeio de campanhas eleitorais”.

Essa regra para a composição da dotação orçamentária do fundo foi parcialmente alterada em 2019. Ficou assim: o valor mínimo corresponderá “ao percentual do montante total dos recursos da reserva específica a programações decorrentes de emendas de bancada estadual impositiva, que será encaminhado no projeto de lei orçamentária anual”. Aquela regra de definição pelo TSE foi mantida.

Em 2018 (eleições gerais), os gastos do fundo eleitoral ficaram em R$ 1,7 bilhão e, em 2020 (eleições municipais), totalizaram R$ 2 bilhões. Para 2022 a nova regra contida na LDO elevou o valor previsto para R$ 5,7 bilhões. Operou-se em meio à nebulosidade dos dispositivos descritos para promover um gasto injustificável em plena crise pandêmica.

A saber, a regra proposta pelo Congresso na LDO, aprovada antes do início do recesso parlamentar, determinou que o fundo fosse composto pela soma de 25% das dotações da Justiça Eleitoral, em 2021 e 2022, e do valor do TSE. Isso contraria, diretamente, a Lei Eleitoral, que não manda somar valores, mas determina patamares mínimos. O resultado dessa salada é uma estimativa de R$ 5,7 bilhões. Vale notar que tal montante não está fixado na LDO. Esta apenas manda que o projeto da LOA siga as novas regras, redundando na projeção acima.

Se a inflação de 2021 ficar, por hipótese, em 7%, o valor do fundo de 2020 corrigido por essa variação resultaria em R$ 2,14 bilhões. Essa conta mostra o disparate da proposta contida na LDO. O valor estimado corresponderia a 2,7 vezes o gasto corrigido pela inflação de 2020. O que mudou, desde o ano passado – ou mesmo desde 2018 –, para o fundo engordar dessa maneira? Nada.

A LDO, espécie de preparação para o Orçamento propriamente dito, revelou que o desejo por gastos em ano eleitoral será capaz de tudo; da parte do Legislativo e do Executivo. A mudança da regra para aportes ao fundo eleitoral é apenas o problema mais visível.

Faz falta o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Nos Estados Unidos, a política orçamentária está a cargo do Office of Management and Budget (Escritório de Administração e Orçamento), ligado diretamente à Casa Branca. Para ter claro, o Brasil mantém uma burocracia impecável na Secretaria de Orçamento Federal (SOF), hoje sob o guarda-chuva do Ministério da Economia.

No ano que vem, a depender da inflação de 2021, haverá alguma folga no teto de gastos. É verdade que as despesas estão abaixo do observado em 2018, em termos reais, e que a dívida pública, com a ajuda nefasta da inflação, diminuiu em relação a dezembro de 2020. Essas duas questões criaram, no imaginário político, espécie de licença para gastar. Ilusão. É preciso avançar na direção de uma reforma fiscal ampla.

Em relação à nova regra do fundo eleitoral, o caminho é o veto presidencial. A proposta do Orçamento viria com o valor definido pelo TSE e ponto. A questão é eminentemente política, não técnica. (O Estado de S. Paulo – 03/08/2021)

Felipe Salto, diretor executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente ) e professor do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa )

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