Luiz Carlos Azedo: Flagrantes do darwinismo social

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

O que há entre o depoimento do deputado Osmar Terra (MDB-RS) na CPI da Covid no Senado e o confronto entre índios e forças policiais na Câmara dos Deputados? Por trás dos dois episódios, existe um darwinismo social muito perigoso, porque afronta os valores civilizatórios e os direitos humanos. Terra disfarça, mas continua sustentando a tese da imunização de rebanho, que até agora orienta a estratégia do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia do novo coronavírus; o episódio da Câmara desnuda o caráter eugenista da agenda governista “vamos passar a boiada” nas terras indígenas, encampada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

Ex-ministro da Cidadania, Osmar Terra é médico e sempre foi bem conceituado entre os parlamentares da Frente da Saúde, mas, no governo Bolsonaro, assumiu posições cada vez mais criticadas por seus colegas médicos da área de saúde pública. Ontem, reiterou as posições que pautam o presidente da República: criticou o lockdown, culpou os governadores pelas mais de 500 mil mortes registradas desde o início da pandemia, disse que o contágio acontece dentro das casas das famílias e que “o vírus vivo provoca mais anticorpos do que o vírus morto”, ou seja, que as pessoas infectadas estão mais protegidas do que as vacinadas. Mais imunização de rebanho, impossível!

Durante a pandemia, Terra fez previsões que influenciaram decisões do Ministério da Saúde e estavam completamente erradas: por exemplo, que a doença mataria menos de 800 pessoas e que a pandemia duraria apenas 12 semanas. Sustentou que os números de novos casos e mortes tinham se estabilizado no segundo semestre do ano passado e que o país foi surpreendido por uma nova cepa, o que também não ocorreu: a pandemia nunca foi controlada. Negou a existência de um “Ministério da Saúde paralelo” e que influencia Bolsonaro, apesar de terem se encontrado 20 vezes para tratar do assunto.

Eugenia

Indígenas entraram em confronto com policiais militares e legislativos, no início da tarde de ontem, durante uma manifestação em frente ao Anexo II da Câmara, em Brasília, porque foram impedidos de entrar no Congresso para acompanhar a votação da Projeto de Lei (PL) 490/2007, por ordem do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL). O projeto abre as terras indígenas para grandes projetos de exploração econômica e inviabiliza, na prática, novas demarcações. Cerca de 800 indígenas, representando 40 povos, estão em Brasília e participam do Levante Pela Terra, mobilização em defesa dos seus direitos constitucionais, ameaçados pela PL 490.

Cinco pessoas ficaram feridas no confronto, três policiais — dois legislativos e um PM — e dois indígenas, segundo a Polícia Legislativa. Um policial legislativo foi atingido por uma flechada na perna e um servidor administrativo foi ferido no tórax; um policial militar levou uma flechada no pé. Segundo a PM, durante o ato, policiais legislativos do Congresso atiraram bombas de gás. Os militares foram acionados para evitar mais confronto. As lideranças indígenas afirmam que os ataques aconteceram no estacionamento do Anexo 2 da Câmara, com balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral.

Dois indígenas (um homem e uma mulher) estão no Hospital de Base em Brasília, com ferimentos graves. Uma dezena de crianças, idosos e mulheres tiveram ferimentos leves e estão em atendimento na tenda da saúde do Acampamento Levante pela Terra (ALT), ao lado do Teatro Nacional. Segundo os indígenas, eles realizavam uma marcha pacífica pela Esplanada dos Ministérios, quando foram recebidos com bombas de gás e efeito moral, a partir de uma barricada montada pelo Batalhão de Choque na entrada do Anexo 2 da Câmara.

O darwinismo social é uma doutrina de evolução da sociedade que se baseia na teoria da evolução desenvolvida por Charles Darwin (1808-1882), no século XIX. Na virada para o século XX, o filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903), que antes de Darwin pensou no tema da evolução, defendeu a existência de sociedades superiores às outras: as que sobressaem física e intelectualmente devem se tornar as governantes; as menos aptas deixariam de existir, por não acompanhar a evolução da sociedade. Trata-se, obviamente, de um pensamento preconceituoso e racista, que serviu para explicar o domínio imperialista europeu e legitimar o colonialismo. O nazismo e a eugenia (melhoria genética) resultaram dessa tese. Na pandemia, também a ideia de que “os mais fracos morrerão”, que está por trás da teoria da imunização de rebanho; de igual maneira, a tese eugenista de que “os índios precisam ser civilizados”. (Correio Braziliense – 23/06/2021)

Leia também

O peso das alianças nas eleições de SP e BH

Em São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) tem 45% de intenções de votos; em Belo Horizonte, o prefeito Fuad Noman (PSD) assumiu a liderança, com 46%.

‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

Santa raiva

A tragédia educacional precisa ser vista como a da escravidão.

Como se reconhece um democrata?

Ele se move pelas sendas complicadas da razão, recusando a manipulação das emoções que políticos e governantes fazem regularmente, sobretudo em períodos eleitorais.

Democracia na América

As nações democráticas de todo o mundo, entre as quais a nossa, não podem dispensar a presença renovada dos Estados Unidos nas suas fileiras.

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!