Luiz Carlos Azedo: Lula tem razão: os juros estão exagerados

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

”É melhor ser feliz do que ter razão.” A frase do poeta Ferreira Gullar se aplica a muitas coisas. Ao motociclista no trânsito, por exemplo. E se aplica também ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, principalmente nessa polêmica sobre os juros e a concentração de renda no Brasil. Realmente, as taxas de juros do Banco Central (BC), com a Selic a 13,75%, são escorchantes (ultrapassam muito a medida justa; abusivas, exorbitantes), ainda mais com uma previsão de que a inflação ficará, neste ano, em 5,5% (Focus). São 8,25% de diferença. Nenhum país do mundo pratica uma taxa de juros real dessa magnitude.

O enriquecimento no Brasil não pode ser atribuída apenas ao talento empresarial e à capacidade de trabalho. Porém, é injusta a generalização da tese de que os empresários não trabalham — a maioria trabalha muito. Entretanto, o rentismo e o patrimonialismo são formas seculares de acumulação de capital no Brasil, a gênese da formação do grande parte do empresariado brasileiro e, digamos também, da elite política do país. A inflação e as altas taxas de juros tornam os ricos mais ricos e os pobres mais pobres no Brasil.

Esse processo explica por que a elite econômica, os ricos, em sua maioria, apoiaram a reeleição de Jair Bolsonaro, mesmo sabendo dos riscos para a nossa democracia. O mesmo fenômeno ocorreu após o golpe militar de 1964, que obteve maciço apoio até da classe média, durante o chamado “milagre econômico”, que fez o bolo crescer sem dividi-lo — ao contrário do que fora prometido pelo então ministro da Fazenda, Delfim Netto. A eleição de Lula mostrou um país dividido não apenas ideologicamente, mas também socialmente.

Entretanto, Lula precisa entender que já não vivemos numa sociedade industrial como aquela que se formou em meados do século passado, e que o transformou na maior liderança operária do país. Ele transitou do mundo sindical para a alta política, chegou à Presidência pela terceira vez numa “modernidade líquida”, como diria o sociólogo polonês Zygmunt Baumann. A velha estrutura de classes sociais bem definidas, que deu origem à democracia representativa, não existe mais.

A política se organiza por meio dos partidos no plano institucional. Porém, na sociedade o espaço público vem sendo ocupado cada vez mais pelas redes sociais, às vezes clandestinas. Os sindicatos e outras agências da sociedade civil perderam protagonismo nesse mundo novo, marcado por novas relações sociais, econômicas e de produção frágeis, fugazes e maleáveis. Ideias e relações pessoais passam por transformações rápidas e imprevisíveis. Instabilidade financeira, novas tecnologias e mudanças na estrutura produtiva diluíram o mundo que se conhecia até o final do século passado. As ideias de coletividade deram lugar ao individualismo.

Concentração de renda

Voltando a juros altos, inflação e retomada do crescimento. A herança do nosso passado se faz presente. Até 1930, nosso desenvolvimento econômico seguiu o modelo clássico, voltado para o setor exportador. A partir daí, as atividades voltadas para o mercado interno passaram a predominar, em decorrência da crise de 1929 e da II Guerra Mundial, e da manutenção e ampliação da renda interna. Nosso desenvolvimento econômico, particularmente a industrialização, caminhou sobre essas duas pernas.

A inflação brasileira, até então, refletia a política monetária e creditícia, mas passou a ser consequência também dos desajustes estruturais da economia. Depois de 1954, quando o governo federal passou a fazer também grandes investimentos públicos, a inflação foi uma das formas de financiamento da industrialização e se tornou um instrumento de concentração de renda, em favor de empresários, industriais, comerciantes e empreiteiros. Assalariados, trabalhadores rurais e classe média pagaram a conta. Greves operárias, manifestações estudantis e ocupações de terras foram a resposta ao modelo. O desequilíbrio do balanço de pagamentos e o sistema cambial também favoreceram a concentração de renda.

Quando Lula fala que existe uma cultura de juros altos, precisa levar em conta que existe, também, uma memória da inflação inercial, que foi superada pelo Plano Real, mas passa por uma recidiva desde o governo Dilma Rousseff. Por isso, a ideia de se tolerar um pouco mais de inflação para o país se reindustrializar e voltar a crescer é muito perigosa.

Hoje, a inflação está fora de controle. É resultado de uma política de juros baixos (2%) e câmbio alto adotada por Roberto Campos Neto no BC, no começo do governo Bolsonaro, sob orientação de Paulo Guedes, não apenas por causa da pandemia e da guerra na Ucrânia. A alta do dólar favoreceu o setor exportador; a taxa de juros, o rentismo.

A vitória eleitoral de Lula foi uma reação popular a esse modelo, como fora a volta de Getúlio Vargas ao poder, em 1950. O presidente tem razão quando ataca os juros extorsivos praticados pelo BC, mas isso não resolve o problema. Pelo contrário: a forma como está fazendo isso tem uma lógica eleitoral evidente, porém, facilita a vida da oposição bolsonarista e aperta o nó do conflito distributivo, quando deveria afrouxá-lo.

Nove entre 10 grandes banqueiros discordam da atual política monetária. As fintechs é que estão ditando as regras do jogo. Além disso, arma-se uma casa de caboclo para Lula no Congresso, a pretexto de defender o BC. Não basta ter razão para ser feliz. (Correio Braziliense – 08/02/2023)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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