Fernando Gabeira: A emoção num museu de grandes novidades

Suspeito que o próximo passo será criar CPI numa tentativa de jogar a culpa do quebra-quebra do 8 de Janeiro nos adversários

Um dos traços que tornam diferente o Brasil de hoje é o comportamento diante das eleições. No passado recente, divulgado o resultado, todos, vencedores e vencidos, voltavam para suas atividades cotidianas e iam pensar no assunto quatro anos depois.

Nesta semana, a disputa no Senado representou mais um turno de um confronto interminável. A extrema direita perdeu, mas tem uma incrível capacidade de racionalização. As derrotas são transformadas em vitória, e logo inventarão uma nova luta.

Suspeito que o próximo passo será criar uma CPI numa tentativa de jogar a culpa do quebra-quebra de 8 de Janeiro nos adversários. Dirão que petistas infiltrados foram os responsáveis, com a cumplicidade do governo federal. É um pouco a tática de culpar a vítima pela violência que se comete contra ela.

Fui comentar para a GloboNews, mas a posse do novo Congresso é para mim uma viagem emocional. Passei 16 anos da vida trabalhando lá. Encontrei antigos colegas, todos nós envelhecidos. Alguns me apresentavam a filha que tomará posse em seu lugar; outros, a mulher; um deles, o neto. Como as coisas se dão em família, concluí.

Reencontro o Brasil onde viajo tanto ao ver as famílias vestidas como se fossem a um casamento na pequena cidade; as meninas com vestidos compridos; os homens de terno escuro; as mulheres se equilibrando no salto novo e alto.

Sinto-me meio perdido. Na televisão, ao falar de Rogério Marinho, creio que disse Djalma Marinho, confundindo o candidato com seu avô, um famoso político na sua época.

Nesse clima de emoção, acabei questionando a opinião de uma colega sobre Arthur Lira. Não paro de passar vergonha. Já não era mais para ficar discutindo tarde da noite na TV, muito menos questionar opinião dos outros. Já devia estar fazendo poemas amorosos sobre o país, como este verso de Luiz Lobo: A bandeira do Brasil, coitadinha tão feinha.

Meu coração estava com Chico Alencar, candidato na Câmara. Na tribuna a seu lado, duas deputadas indígenas, uma bela mulher trans, enfim, minha gente, por quem amava trabalhar quando deputado.

Não é só gente discriminada, mas assassinada cotidianamente no Brasil. Às vezes, há um surto de consciência, como agora com os ianomâmis. Mas, de um modo geral, tudo se passa silenciosamente para as pessoas na sala de jantar. Preciso de um pouco de literatura para enfrentar o cotidiano da TV. Tentei usar uma frase de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, autor de “O leopardo”, para orientar minhas análises na semana:

— Tudo deve mudar para que tudo fique como está.

Algumas coisas mudaram, como o governo central e a ênfase na democracia, mas os presidentes do Senado e da Câmara são os mesmos do período Bolsonaro.

Movem-se em conjunturas diferentes. Rodrigo Pacheco será mais intenso na defesa do Estado de Direito, mais cuidadoso com os projetos que destroem o meio ambiente; Arthur Lira, com uma nova base de apoio, terá de ser hábil diante de um governo mais articulado politicamente e menos vulnerável.

Mas quem coordenou o orçamento secreto e fez dele seu grande instrumento de poder não mudou substancialmente. Duvido que na passagem de ano tenha ido à praia prometer a Iemanjá que priorizará os interesses nacionais e esquecerá os do político provinciano. Pode ter até acontecido, mas estava em outra praia e não presenciei.

Apesar de tudo, foi uma semana memorável. Encontrar velhos funcionários do Congresso, me perder naquela multidão endomingada, formular hipóteses tarde da noite na TV. A emoção às vezes nos envergonha, mas é boa resposta para aquela saudação tupinambá, título de um livrinho que tento escrever: “Ainda vives?”. (O Globo – 06/02/2023)

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