Governo e forças políticas que o apoiam precisam trabalhar na perspectiva de ampliar a adesão das forças democráticas
O que está acontecendo no Brasil, desde as invasões do Palácio presidencial, da Suprema Corte e do Congresso Nacional, no último dia 8, era um cenário previsível? Na verdade, sim. Foram anunciadas, de diversas maneiras, em diversos momentos do processo político eleitoral que levou Lula, pela 3ª vez, à presidência da República.
O saldo recente deste processo político-eleitoral coloca em disputa visões distintas do Brasil que somos e queremos ser. Uma disputa entre uma parte da sociedade brasileira, conservadora, de extrema direita, que apoiara e continua apoiando Bolsonaro e, por outro lado, as forças políticas democráticas que fizeram a campanha do presidente Lula, no segundo turno da eleição presidencial brasileira, junto com as outras forças políticas que se agregaram em uma frente mais ampla para a construção da governança democrática que ora se inicia nesta complexa e desafiadora conjuntura política da sociedade brasileira.
O assalto aos palácios
Como foi e está sendo construído o governo do presidente Lula para dirigir o país, nos próximos 4 anos, enfrentando a grave crise política, econômica, social, ambiental e de valores que vive hoje a sociedade brasileira, agravada com o assalto à sede dos três poderes da República, no último domingo?
O que deve mudar e o que deve permanecer frente ao assalto e depredação do patrimônio público em Brasília, acompanhados e repudiados pelas sociedades brasileira e mundial? O que ainda pode acontecer, ou melhor, está acontecendo, por iniciativa dos setores mais conservadores da direita brasileira, que continuam a apoiar Bolsonaro, viabilizadores daquelas invasões e que continuam incentivando outras manifestações em várias regiões do Brasil com o objetivo de causar pânico, terror e desestabilização do governo Lula e da própria democracia brasileira?
Os apoiadores de Bolsonaro continuam atuando, mesmo depois das contundentes condenações da opinião pública, dos meios de comunicação, da maioria da sociedade brasileira e mundial. No Brasil, a reação do poder público federal, dos governos estaduais e da sociedade em geral foi uma demonstração inequívoca da condenação à invasão dos palácios dos poderes da república, aos atos de vandalismo e terrorismo ora em curso, em defesa da democracia, do Estado de Direito e da república brasileira.
Há que considerar e refletir sobre a vitória de Bolsonaro em 2018, como fundamento para a compreensão e superação do que está acontecendo e ainda pode acontecer no Brasil: foi uma consagradora vitória das forças conservadoras brasileiras, com apoio internacional, do discurso de Estado mínimo, do retorno de uma forte presença dos militares na vida nacional e admitir a derrota daquelas forças políticas fiadoras da transição democrática, que estiveram de maneira alternada no centro do poder no Brasil, nas últimas décadas. Foi a derrota da chamada nova república, dos governos pós-regime militar, principalmente do PSDB e do PT, hegemônicos há décadas na cena política brasileira.
A vitória recente do presidente Lula, no segundo turno das eleições presidenciais, explicita e aprofunda este quadro de divisão da sociedade em um cenário de discursos extremados que dominou e continua dominando a cena política brasileira.
O assalto e a destruição do patrimônio público em Brasília e os seus desdobramentos regionais, ora em curso, são fruto dessa radicalização, desnudadora dos nossos conflitos e contradições existentes desde o processo de colonização, de construção da república até à atualidade.
Como vamos enfrentar e sair desta situação? Quais são as alternativas e as bandeiras a serem defendidas que nos levem à reafirmação da democracia tão duramente conquistada pela sociedade brasileira nas últimas décadas?
A construção da frente ampla, a defesa da democracia e da república.
Como se comportarão as forças políticas que atualmente apoiam o presidente Lula frente à atual realidade brasileira e nos próximos 4 anos?
A construção da governabilidade é uma difícil tarefa a ser trabalhada por todos aqueles que apoiaram o presidente Lula no segundo turno e todas as outras forças políticas democráticas, principalmente aquelas que mesmo sendo eleitores de Bolsonaro, criticaram a tentativa de golpe de Estado e o assalto aos palácios da república.
A construção e a amplitude da governança democrática do presidente Lula vão ser proporcionais à capacidade de agregação das forças democráticas brasileiras ao processo de construção de uma frente ampla que seja capaz de construir e realizar, nos próximos quatro anos, as reformas para a alavancagem de novas políticas econômica, social, ambiental, educacional e cultural que nos coloquem no caminho da almejada sociedade sustentável.
O assalto aos palácios em Brasília pode ser um momento de aglutinação das forças democráticas da sociedade brasileira, um divisor de águas funcionando como um momento de reflexão, discussão e catarse da sociedade, no caminho da construção de um diálogo permanente destas forças para a governabilidade e de um pacto político-institucional de reafirmação dos valores da democracia e da republica. A reação contundente da opinião pública, dos meios de comunicação e das sociedades brasileira e internacional ao assalto aos palácios é a reafirmação dos valores da república no Brasil, a favor da democracia, contra a barbárie.
O governo, que ora se inicia, pode se beneficiar da grave crise política e institucional que estamos vivendo, se tiver a capacidade política de unir a sociedade frente a um programa de reformas para enfrentar às crises social, econômica e ambiental que impactam a sociedade brasileira em geral, com seus milhões de desempregados.
O imperativo de defesa e ampliação da democracia é o caminho para a construção de novas relações políticas, econômicas e sociais centradas na preservação da vida, na própria natureza, a favor de uma cultura de paz.
A construção desta perspectiva sustentável é o desafio colocado frente às dificuldades que estamos vivendo no Brasil, no caminho desse pacto político-institucional desejado. A sociedade brasileira continua a ser desafiada na construção de novas relações centradas no que nos faz humanidade e dá sentido a nossas vidas: a cooperação, a solidariedade, a luta pela igualdade, liberdade e fraternidade. Nas ruas e nas redes sociais do Brasil, é visível a tragédia de milhões de pessoas, excluídas das conquistas elementares que nos fazem humanidade: trabalho, alimentação, moradia, saúde-saneamento básico, segurança pública, mobilidade, educação, cultura…
Portanto, a expectativa da maioria dos brasileiros é saber como o governo Lula, que ora se inicia, fará o enfrentamento e a superação desta difícil realidade econômica, social e ambiental, impactada pelo aumento da inflação, da crise econômica e social que se prolonga, em uma sociedade ainda sob o trauma e os efeitos da pandemia.
O governo do presidente Lula e as forças políticas que o apoiam precisam trabalhar na perspectiva de ampliar a adesão das forças democráticas, inclusive dos bolsonaristas não golpistas, como fundamentos da governança democrática da sociedade brasileira, nos próximos quatro anos.
A resiliência da democracia brasileira está em pauta. Portanto, a tecelagem de uma alternativa democrática às crises política, econômica e social é o desafio de trabalhar a unidade das forças democráticas, dialogando permanentemente com a cidadania, com o mundo do trabalho e da cultura para a mobilização de uma frente democrática, a mais ampla possível, que garanta o funcionamento do Estado de Direito, a defesa da Constituição e a as reformas, garantindo a melhoria efetiva e afetiva da sociedade brasileira, nos próximos quatro anos.
Lula, o PT, a frente democrática e a sociedade brasileira em geral estão sendo desafiados no sentido de superação dessa crise política e institucional instalada, a partir do assalto aos palácios da república.
Estamos vivendo um momento histórico, uma oportunidade de avaliar e entender melhor o funcionamento das organizações da república, do mercado e da sociedade civil em geral.
Vamos atravessar o nosso rubicão.
Salve a República e a Democracia!
George Gurgel, professor da UFBa (Universidade Federal da Bahia) e do Instituto Politécnico da Bahia