Eleitor pode ter dado um voto de advertência a Lula, para não deixá-lo ganhar no primeiro turno
Se a pesquisa do Ipec estiver certa, sobraram eleitores de Simone Tebet e Ciro Gomes que não fizeram voto útil em Bolsonaro no primeiro turno e votarão em Lula no final, ampliando a diferença a favor do ex-presidente, embora Bolsonaro tenha também aumentado sua votação. Não colocar os que se abstiveram no primeiro turno na soma de votos que ainda podem ser alcançados é um erro de cálculo. Existem mais que os 6,2 milhões de votos de diferença do primeiro turno. E a turbinada da disputa religiosa na campanha terá consequências no futuro da democracia no país.
Como o comportamento do eleitor está um tanto fora da curva, dificultando as pesquisas, há ainda outra possibilidade, além do voto útil no primeiro turno. O presidente teria sido beneficiado por um “voto advertência”. Alguns eleitores teriam votado nele apenas para evitar que a eleição terminasse no primeiro turno, para não dar a Lula um cheque em branco.
Houve caso semelhante na eleição presidencial de 2006, quando o hoje vice de Lula, Geraldo Alckmin, então no PSDB, teve surpreendentes 41% no primeiro turno, mas menos votos no segundo. Teria sido uma advertência dos eleitores a Lula. A diferença para a eleição deste ano é que, pela primeira pesquisa, parece que Bolsonaro aumentará sua votação.
O ex-presidente conseguiu nesse segundo turno o apoio de figuras emblemáticas da centro-esquerda e do centro político, como a candidata derrotada Simone Tebet, o ex-presidente Fernando Henrique, tucanos tradicionais, economistas e empresários ligados a projetos liberais —o que amplia a abrangência de sua candidatura. Mas a esquerda ainda terá sério problema se não der indicações mais firmes sobre o que quer fazer na economia. A direita se moveu para a extrema direita com Bolsonaro, e Lula pode ainda convencer quem votou em Bolsonaro se escolher uma equipe econômica com a mesma tendência de seu primeiro governo em 2003.
A direita se conecta com as igrejas evangélicas, os grupos milicianos, os grandes empresários (sem tanto viés social) não industriais. De reboque, vêm os militares, os liberais do setor financeiro, o capital externo. A campanha do PT ainda está ligada aos mais desfavorecidos por meio dos programas sociais e à visão retrógrada da atuação sindicalista, o que retira de Lula a capacidade de se conectar com os pobres que aspiram a crescer social e economicamente.
A ligação do Nordeste com o PT está em grande parte vinculada à imagem de Lula, não à do partido, tipo “pai dos pobres”, “padim Ciço”, Antônio Conselheiro, um fator messiânico. Na guerra religiosa, Lula recebeu apoio de padres da esquerda católica que sempre estiveram ligados ao PT. Para disputar o voto evangélico, fará uma campanha especial.
Num debate do Instituto Fernando Henrique Cardoso que me foi enviado por um leitor, Ronaldo de Almeida, professor livre-docente do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenador do Laboratório de Antropologia da Religião da instituição e também pesquisador do Cebrap, destacou que já em 2018 Bolsonaro teve mais de 10 milhões de votos que Haddad.
O teólogo e jornalista Carlos Costa, fundador da ONG Rio de Paz, destaca alguns pontos cruciais do avanço dos evangélicos na política: 1) Antes de ser evangélico, esse eleitor é brasileiro. Nada mais faz do que reproduzir a cultura brasileira em sua vivência religiosa. Este é o país do mandonismo, do patrimonialismo, do nepotismo, da banalização da violência. 2) A pobreza da pregação, de maneira geral, mais baseada na questões morais que no Evangelho. 3) A proximidade com o protestantismo norte-americano, que exalta a prosperidade, da mesma maneira que o Partido Republicano recebe a influência de uma ultradireita conservadora. Além do mais, onde o Estado é fraco, e o setor privado não ocupa espaço porque o mercado não rende, o assistencialismo religioso viceja.
O presidente Bolsonaro reagiu à primeira pesquisa do segundo turno voltando a tentar desacreditá-la na live de ontem. Isso pode mostrar que, se o resultado se mantiver nas próximas pesquisas, ele começará a aumentar seus ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ontem mesmo criticou a ministra Cármen Lúcia, que mudou seu voto numa decisão do STF, beneficiando Lula. Teremos ainda muita emoção neste segundo turno, além de variadas infrações legais, como vem fazendo o presidente Bolsonaro. Um abuso de poder político e econômico que não deveria ser permitido. (O Globo – 06/10/2022)