Merval Pereira: Aposta no escuro

À medida que se aproxima o dia da eleição, fica claro que não há apoio político nem militar para que o presidente Bolsonaro tente um golpe. As pesquisas mostram que hoje o bolsonarismo é resiliente, mas minoritário. O arroubo militar de querer encontrar nas urnas eletrônicas indícios de fraude foi neutralizado pela ação do Tribunal de Contas da União (TCU), que também fará uma auditoria técnica nelas, nos mesmos moldes pretendidos pelos militares.

A briga entre os políticos do Centrão e os assessores palacianos, na maioria militares, mostra que a unidade do apoio à reeleição está se esfacelando na mesma proporção em que cresce a possibilidade de o ex-presidente Lula vencer no primeiro turno, como mostrou a pesquisa do Ipec divulgada ontem. Quando Bolsonaro diz que vencerá no primeiro turno, com 70% dos votos, está desacreditando suas palavras, não as pesquisas. Cada vez menos pessoas acreditam nessa possibilidade.

A questão agora é saber, e só as urnas dirão, se a maioria dos eleitores resolveu dar um cheque em branco a Lula para se livrar de Bolsonaro quanto antes. Existe a possibilidade, aventada por setores liberais, de votarem em Lula para sepultar a farsa bolsonarista de prometer um governo liberal e entregar outro, intervencionista e antidemocrático. Parece uma distorção grande demais, mas no Brasil tudo é possível.

Bolsonaro não foi eleito em 2018 com base no eleitorado que tradicionalmente foi do PSDB, que nunca foi de direita, como o PT tentou marcá-lo? Era uma massa silenciosa de direita e extrema direita que se escondia no partido de centro-esquerda, o único a poder disputar a hegemonia com o PT, que consideravam o inimigo abominável, e não o adversário político. O PSDB apoiou Lula no segundo turno contra Collor e esteve sempre ligado a esse eleitorado, tendo apoiado Haddad no segundo turno da eleição de 2018.

A adesão do ex-tucano Geraldo Alckmin, que compõe a chapa com Lula, não é, portanto, uma anomalia, mas uma continuidade da postura dos tucanos originais contra uma extrema direita que não pode continuar destruindo o país. Quem tem razão é o ministro Paulo Guedes, ao dizer que o Brasil foi governado nos últimos 20 anos por partidos social-democratas, colocando na mesma corrente PT e PSDB.

Lula, que passou seus mandatos inteiros acusando os tucanos de lhe ter deixado uma “herança maldita”, hoje se diz saudoso do tempo em que PT e PSDB disputavam a Presidência da República. A velha guarda do PSDB hoje apoia Lula abertamente ou por mímica, como fez o ex-presidente Fernando Henrique. Os neotucanos assumem a candidatura de direita de Bolsonaro, fazendo com que seus fundadores se afastem da sigla, assim como fizeram anteriormente com o PMDB.

A dúvida que resta nestes últimos dias é dar esse cheque em branco ao PT, depois de toda a roubalheira que implementaram como instrumento de governo. O que poderia ser um obstáculo insuperável para Lula acabou ficando em segundo plano diante das ameaças de Bolsonaro ao regime democrático. Além de o governo “liberal” também ter se envolvido em diversos casos de corrupção, culminando com o orçamento secreto, cujo valor rivaliza com o rombo que o PT e aliados deram no mensalão e no petrolão.

Além da realidade que nos impõe a escolha mais uma vez do “menos pior”, há o fato de a persona de Bolsonaro ser antidemocrática genuinamente. O ex-presidente Lula pode ser acusado de tudo, muitas vezes merecidamente, mas não de antidemocrático. Embora muitos no PT o sejam, e a tentativa de controlar os meios de comunicação é uma prova disso. Lula começou a campanha raivosamente, com ameaças desse tipo, mas, à medida que entendeu que não seria bem-sucedido se continuasse naquele tom, a campanha foi se mostrando favorável a ele, e o ressentimento amainando.

Chamar Alckmin foi um gesto, reaproximar-se de Henrique Meirelles outro. Só o futuro dirá, mas o passado recente demonstra que reincidir na escolha de Bolsonaro, depois que ele se revelou por inteiro nestes quase quatro anos de governo, não é desculpável naqueles que não são extremistas.

Muitos continuam confiando em Paulo Guedes, que teve seus êxitos: PIB crescendo, embora pouco, inflação caindo, emprego normalizando, primeiro governo em 20 anos que terminará gastando menos em relação ao PIB, despesas com pessoal caíram, nova lei de saneamento, reforma da Previdência, autonomia do Banco Central, nova lei de falências, concessões. O problema é que essas conquistas econômicas não se refletem nos mais pobres, a inflação dos alimentos resiste. A gastança eleitoral pode desequilibrar o sistema fiscal, os juros altos para conter a inflação limitarão o consumo. Durante a pandemia foi fácil segurar salários de servidores, e as despesas com a Previdência caíram. Mas as pressões serão enormes. (O Globo – 27/09/2022)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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