O governo Bolsonaro está em seu estertor. Só isso explica um conjunto de medidas eleitoreiras, ao arrepio da lei e da Constituição, visando exclusivamente à sua reeleição. Qualquer pudor, qualquer respeito constitucional e qualquer compostura com os recursos públicos foram simplesmente desconsiderados. Propostas de governo e futuro de país tornam-se fora de moda, como se a moda fosse deixar terra arrasada para outro governante. Se o presidente tivesse um sentido mínimo de responsabilidade e uma visão de Estado, saberia que, após ele, se ele mesmo for eventualmente reeleito, há todo um país a ser reconstruído.
Institucionalmente, o País está arrasado, embora mantenha a aparência jurídica da normalidade. Exemplo disso, entre tantos outros, está a agora dita PEC Kamikase, cujo nome vem bem a propósito, visto que é um rombo nas contas públicas, uma espécie de morte politicamente produzida. Lembre-se que os kamikases eram pilotos japoneses que, no final da guerra, nas batalhas do Pacífico, lançavam seus aviões carregados de explosivos contra os navios aliados. Ou seja, tratava-se de ataques suicidas, assim planejados.
Ora, a dita PEC é uma missão suicida no que diz respeito às contas públicas, à responsabilidade fiscal e, portanto, ao combate à inflação e à redução da dívida pública, produtora no médio prazo de mais miséria e menor crescimento. É a batalha decisiva de um governo que não vê diante de si nenhuma perspectiva séria de reeleição. Não sem razão – se razão nisso há –, ainda recorre a um inexistente “estado de emergência”, para que o presidente não seja responsabilizado por irresponsabilidade fiscal ou por crime eleitoral. Note-se que, em vez de obediência à Constituição, recorre-se a uma gambiarra jurídica para evitar qualquer julgamento e condenação. O desrespeito à Constituição adota, paradoxalmente, uma forma constitucional.
Talvez não haja maneira melhor de enfraquecer uma democracia do que aparentemente segui-la, abandonando os seus valores, princípios e acordos relativos ao bem público. As instituições vão-se erodindo, como se nada estivesse acontecendo. O cinismo é completo, pois as bocas estão cheias de palavras que nada significam, apesar de tencionarem algo dizer. Na superfície, a normalidade continua vigorando, quando essas mesmas bocas se tornam vorazes na apropriação dos recursos públicos, que são, como se deveria saber, dos cidadãos, fruto dos impostos.
A contrapartida ao enfraquecimento democrático consiste nesta voracidade de parlamentares que passaram a controlar o Orçamento. O governo Bolsonaro está abdicando de governar, transferindo essa função a deputados e senadores que passariam a ter uma espécie de reserva de mercado no destino desses recursos. O dito orçamento secreto, que de secreto não tem mais nada, passaria a ser impositivo, segundo alguns deputados, levando qualquer governo progressivamente à imobilidade. O governo não mais governaria e o Parlamento só legislaria para melhor abocanhar sua fatia dos impostos. Do ponto de vista governamental, é propriamente kamikase!
Nesta tentativa de apagamento da democracia, do ato mesmo de governar em função do bem público, o presidente investe contra as urnas eletrônicas, como se fosse esse o grande problema nacional. Fome, miséria, inflação e, portanto, o desespero de milhões de brasileiros não fazem parte de suas preocupações. Tudo é manobra diversionista.
Não deveria, então, surpreender que a candidatura do ex-presidente Lula progrida, pois está conseguindo capturar para si um forte sentimento antibolsonarista, expressão de um país que começa a fartar-se de tanta pantomima e irresponsabilidade. E isto que as propostas petistas são atrasadas e nada oferecem de concreto no que diz respeito ao enfrentamento dos grandes problemas nacionais. Aliás, se falassem menos, poderiam avançar mais, uma vez que Bolsonaro joga contra si mesmo, fazendo o jogo do seu adversário principal. Se fosse petista, estaria apostando na radicalização bolsonarista.
Nada disso, porém, é brincadeira, por mais fanfarronice que se faça presente. É claro que a cobertura é muitas vezes politicamente correta, porque o discurso social não deixa de aparecer sob a forma de Auxílio Brasil, auxílio taxista, auxílio caminhoneiro ou outro grupo qualquer que o presidente procure privilegiar. Privilégio que se deve unicamente ao projeto reeleitoral, exclusiva preocupação bolsonarista. Os próprios senadores, infelizmente, caíram nesta arapuca, demonstrando falta de descortino político.
E isto no contexto mais geral de uma investida contra o processo eleitoral propriamente dito, via questionamento das urnas eletrônicas. Talvez o presidente Bolsonaro seja o único político do mundo a reclamar de fraude num processo eleitoral que o elegeu! Por coerência, deveria ter apresentado uma representação contra sua própria vitória. Agora, com a derrota se aproximando, o seu alvo passa a ser a própria democracia. Os bolsonaristas estão se tornando kamikases. (O Estado de S. Paulo – 04/07/2022)
DENIS LERRER ROSENFIELD, PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS