Fernando Gabeira: A pobreza da educação no centenário de Darcy

Neste ano do centenário de Darcy Ribeiro, creio que tanto ele quanto outros lutadores pela causa ficariam desolados com o estado da educação no Brasil.

Talvez seja por isso que não se comemore tanto a passagem de Darcy pela nossa vida, uma sensação de vergonha por termos tido gente tão generosa cuidando do tema, e ele ter acabado na mão de pastores ávidos por dinheiro, ouro, mercadores de bíblias superfaturadas.

Mesmo com nossos melhores quadros, teríamos dificuldades com a pandemia. Ela implicaria atraso para todos e, potencialmente, aprofundaria as diferenças entre ensino particular e público.

Com a gestão Milton Ribeiro no MEC, todos os problemas da pandemia foram amplificados pela omissão. Certamente, isso não constará da CPI nem de inquéritos policiais. A História registrará.

O que diria Darcy de um ministro que se coloca contra a inclusão de crianças com necessidades especiais nas escolas, sob o argumento de que atrasam o rendimento das outras?

Típico dos conservadores que fazem tudo para criminalizar o aborto. Têm um grande interesse pelo feto e um absoluto desprezo pelas crianças. Rejeitam planos sociais, combatem a inclusão, defendem o cada um por si.

O ex-ministro de Bolsonaro também afirmou que os gays vinham de famílias desajustadas, numa tentativa desesperada de desqualificá-los. Está sendo processado por isso, mas a pena deveria ser a reeducação. Ministros da Educação de Bolsonaro precisam voltar à escola. O primeiro deles, Ricardo Vélez Rodríguez, mal esquentou a cadeira, e o segundo, Weintraub, estava sempre mergulhado numa batalha contra nosso idioma.

A CPI protocolada na semana passada terá muito o que desvendar ainda sobre o mundo da educação bolsonarista. Os pastores envolvidos frequentavam o Palácio do Planalto e foram uma escolha de Bolsonaro. Ribeiro apenas atendeu ao chefe. Disse isso num áudio vazado e também na Polícia Federal.

O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) é ocupado por um homem do Centrão. Outro dia, uma simples denúncia sobre compra de ônibus escolares apresentava um sobrepreço de R$ 732 milhões.

Os pastores jogavam um jogo mais modesto. Propunham obras a prefeitos e aceitavam propinas pela interferência no ministério. Vendiam bíblias em grande quantidade, algumas com a foto de Ribeiro, grande personagem, que certamente não figura nos Evangelhos.

Ao longo do ano, li que foram comprados computadores em número maior que o de alunos, que equipamentos ultrassofisticados eram destinados a escolas que nem saneamento básico tinham.

Certamente a CPI descobrirá escândalos. De um modo geral, para isso são feitas. Nada, no entanto, consegue revelar o tempo e a energia perdidos com a escolha de Bolsonaro de decretar uma guerra cultural, de destruir as bases reais de nossa educação para atingir seus objetivos ideológicos, como o ensino domiciliar.

No fundo, é também uma guerra contra o ensino público de qualidade, algo que jamais alcançamos na plenitude, o que não significa falta de esforço de muita gente.

Comemorar os 100 anos de Darcy Ribeiro traria à luz muitas dessas vitórias, inclusive as lideradas por ele, como a Universidade de Brasília.

No entanto viveremos esse centenário de trás para a frente: por meio da CPI, veremos como a religião se intrometeu no ensino e como os frutos eram destinados aos bolsos dos pastores e às melhorias em suas igrejas.

No passado, ouvi muita gente dizer que o grande problema do Brasil era a educação. Alguns achavam que o resolvendo, todos os outros também se resolveriam.

Essa tese para mim é um pouco exagerada. No entanto é inegável que muitos problemas brasileiros seriam resolvidos por uma educação pública de qualidade.

O fato de termos chegado a tal ponto de degradação mostra como nos distanciamos dos sonhos e como teremos trabalho daqui por diante, sobretudo agora que não temos Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e tantos outros que dedicaram sua vida à importante causa. (O Globo – 04/07/2022)

Fernando Gabeira, jornalista

Leia também

Com o Congresso, tudo; sem o Congresso, nada

NAS ENTRELINHASUm passeio pela história serve para reflexão sobre...

O padrão a ser buscado

É preciso ampliar e replicar o sucesso das escolas...

Parados no tempo

Não avançaremos se a lógica política continuar a ser...

Vamos valorizar a sociedade civil

Os recentes cortes promovidos pelo Governo Federal, atingindo em...

Petrobrás na contramão do futuro do planeta

Na contramão do compromisso firmado pelo Brasil na COP...

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!