Se é para votar a pauta coalhada de retrocessos que está se desenhando, melhor seria o Congresso emendar festejos de São-João, convenções, recesso, campanha e só voltar a se debruçar sobre esses projetos depois das eleições, quando o clamor das urnas já tiver passado, e a vontade de fazer média com setores do eleitorado não ditar políticas que terão custos para o país, não só orçamentários, mas civilizacionais.
O Senado achou por bem, com outras prioridades para discutir, como a reforma tributária, desenterrar uma Proposta de Emenda à Constituição que, sob a justificativa de promover uma necessária valorização das (já para lá de valorizadas) carreiras da magistratura e do Ministério Público, reedita a antiga prática do pagamento de quinquênios, reajustes salariais automáticos a cada cinco anos trabalhados por juízes, promotores e procuradores.
O penduricalho, um dos poucos retirados da frondosa árvore de benefícios que são os contracheques dessas categorias, foi extinto em 2005. Agora a proposta, que vem sendo defendida pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, seria votada com a condição de ser casada com outra, parada na mesma Casa há meses, que acaba com supersalários e outros privilégios, como auxílios isso e aquilo.
Acontece que, além de serem projetos separados — existe o risco de que um seja votado e o outro convenientemente colocado numa fila que nunca anda —, a PEC que restabelece os quinquênios estende seu pagamento a aposentados e pensionistas. Ora, se essas pessoas não estão na ativa, onde vai parar a justificativa de que é necessário valorizar a carreira diante da proibição de que os ocupantes exerçam outras funções com boas remunerações?
Não bastasse esse trem da alegria sendo colocado nos trilhos, a Câmara votou nesta quarta-feira um projeto talhado apenas para dar a Bolsonaro um discurso para seu eleitorado quanto ao cumprimento de uma promessa de campanha. A regulamentação da prática do homeschooling atende ao público conservador e ao evangélico, dois dos estamentos (que se fundem, mas não são exatamente o mesmo) mais fiéis ao presidente.
O Supremo Tribunal Federal havia determinado que a prática era inconstitucional porque não havia definição em lei de seu funcionamento. A proposta que sai da Câmara para o Senado tenta dar ares técnicos a algo que é puro capricho ideológico.
A simples ideia de que deputados releguem o caráter que a educação tem de formar cidadãos em prol de uma proposta que é pura empulhação doutrinária é de embrulhar o estômago. Que tenham feito isso votando de afogadilho a urgência do projeto e o seu mérito é assombroso, por revelar uma Câmara absolutamente capturada por pautas sectárias, desde que bem paga à base de orçamento secreto.
O Senado tem merecido crédito por Pacheco finalmente ter levantado a voz em contraposição aos laivos golpistas com que Bolsonaro ameaça as eleições. É vital, mas não encerra as responsabilidades da Casa e de seu presidente.
Um governo em fim de feira, de um presidente que todos os dias investe contra marcos civilizatórios, dos direitos dos povos originários à defesa do meio ambiente, não tem legitimidade para aprovar uma medida com tantas consequências para as crianças quanto esse aparentemente inofensivo e pontual homeschooling.
É com projetos como esse, que alimentam bolhas de radicalização ideológica, que se corrói o tecido social e se enseja a formação de grupos cada vez mais avessos ao diálogo e ao contraditório.
Que as prioridades sejam essa na educação e, com a outra mão, o aprofundamento de privilégios para a elite do funcionalismo mostra quanto o Legislativo, e não só este governo lastimável, está divorciado dos debates relevantes para a maioria do povo brasileiro. (O Globo – 20/05/2022)