Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro perdeu o rumo e passa a improvisar

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é um candidato calejado e com sangue nos olhos, que se movimenta estrategicamente para voltar ao poder. Se as eleições fossem hoje, poderia até vencer no primeiro turno, conforme nos revelam as pesquisas. Bastaria que os votos do ex-ministro Ciro Gomes (PDT) fossem lipoaspirados pela polarização do petista com o presidente Jair Bolsonaro (PL), e que a chamada terceira via mantivesse a atual dispersão de forças.

As pesquisas mais recentes mostram que Bolsonaro continua com uma rejeição acima de 60% e não consegue ultrapassar os 30% de intenções de voto. Nos cenários de segundo turno, Lula venceria o presidente com uma vantagem em torno dos 20%. O desgaste de Bolsonaro no confronto com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Supremo Tribunal Federal (STF) barrou seu crescimento, somando-se à mitigação, pela inflação, dos efeitos do seu pacote de bondades econômicas e sociais junto aos eleitores de baixa renda.

Um parêntese para Nicolau Maquiavel, o fundador da ciência política moderna, que viveu o esplendor da República Florentina (fundada em 1115), durante o governo de Lorenzo de Médici (1449 1492): segundo seu texto mais lido pelos políticos, O Príncipe, que trata da conquista e da preservação do poder, os governantes que chegam ao poder mais pela sorte (Fortuna) do que por suas virtudes (Virtù) têm mais dificuldade para manter seus domínios quando mudam as circunstâncias.

Bolsonaro fez um longo percurso para chegar à Presidência, no qual construiu anos a fio uma base resiliente e combativa, formada por corporações e grupos de interesse com os quais se identifica: militares, policiais, agentes de segurança, milicianos, grileiros e madeireiros, além de ruralistas. Entretanto, isso não bastava, nem basta, agora, para vencer as eleições.

Em 2018, foi fundamental também o apoio das igrejas evangélicas, capturando o sentimento de preservação da família unicelular patriarcal ameaçada pela renovação dos costumes, e o apoio de setores reacionários e conservadores da classe média tradicional, insatisfeita com a insegurança e perda de poder aquisitivo. Um episódio imprevisto, de grande efeito catalisador, fez de Bolsonaro um candidato imbatível: a facada que levou em Juiz de Fora (MG), que neutralizou a rejeição que sofria e reforçou a narrativa messiânica salvacionista de sua campanha.

Hoje, a situação é completamente diferente. Sua agenda em relação aos costumes, que tinha amplo apoio popular, resultou num enorme retrocesso cultural e pedagógico, que gerou grande ojeriza no mundo artístico e na intelectualidade. O negacionismo durante a pandemia e o fracasso da política econômica alavancaram sua rejeição na maioria da sociedade. No plano político, a aliança com o Centrão garantiu sua governabilidade, mas não resolveu o problema da qualidade de governança. O resultado é um governo pessimamente avaliado.

Carrinho de compras

O cenário internacional muito favorável à sua eleição, com Donald Trump na Presidência dos Estados Unidos, e outros líderes de direita em países importantes da América Latina e da Europa, também mudou completamente. Trump perdeu a reeleição para o democrata Joe Biden, outras lideranças conservadoras se reposicionaram em relação à crise sanitária e às políticas econômicas ultraliberais. A guerra na Ucrânia coesiona o Ocidente contra a Rússia e cria um ponto de interrogação em relação à China, países sem os quais o agronegócio brasileiro entraria numa crise sem precedentes.

O fim da pandemia ainda não resultou num cenário favorável à reeleição de Bolsonaro por causa do desemprego, da carestia de vida e da falta de oportunidades, sobretudo para os jovens, agravadas pela recessão e alta de preços no mercado mundial, em consequência da guerra. As mesmas desigualdades que favorecerem Bolsonaro, em 2018, agora embalam a candidatura de Lula, cujos pontos fracos, principalmente os escândalos de corrupção envolvendo o PT, não estão tendo mais peso do que as promessas de retomada de seus programas de governo e a memória popular de suas políticas sociais.

Afora as pesquisas, o melhor termômetro eleitoral não está nas redes sociais, mas no carrinho de compra do supermercado. A economia é o ponto fraco de Bolsonaro, que perdeu o rumo com a inflação e, agora, improvisa. Seus factoides eleitorais podem virar um tiro no próprio pé, como essa história de vender a Petrobras, que surgiu de uma hora para outra para agradar o mercado financeiro e servir de cortina de fumaça em relação à alta dos preços dos combustíveis e uma maracutaia à vista: o megagasoduto interligando oito estados do Norte, Nordeste e Centro Oeste, um monopólio do empresário Carlos Suarez, que Bolsonaro e seus aliados do Centrão pretendem aprovar no Congresso. (Correio Braziliense – 13/05/2022)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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