Luiz Carlos Azedo: Contra quem se articula a terceira via?

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Na arte da guerra, não identificar o inimigo principal pode ser um erro capaz de levar ao desastre. Numa ordem democrática, é melhor chamar o “inimigo” principal de adversário, porque ele pode ser o aliado de amanhã, como está acontecendo agora, com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSB), seu rival no segundo turno das eleições de 2006, então pelo PSDB. Numa eleição polarizada entre Lula e o presidente Jair Bolsonaro, o desafio da chamada terceira via é identificar o adversário principal no primeiro turno.

A história está repleta de erros de avaliação sobre essa questão. O mais notório foi o confronto entre comunistas e social-democratas na Alemanha, que dividiu o movimento sindical e a intelectualidade, abrindo caminho para Adolf Hitler chegar ao poder. Os comunistas chamavam os social-democratas de social-fascistas, o que era um equívoco, mas havia lá suas razões: o assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, que representavam o espírito revolucionário da época. Eles acusavam a Social-Democracia Alemã de traição, por ter aprovado os créditos de guerra no Reichstag (parlamento alemão), em 4 de agosto de 1914. Liebeneck foi o único deputado a votar contra a guerra.

Quando a onda da Revolução Russa impactou a Alemanha derrotada na guerra, em 1918, com o surgimento de conselhos operários, a queda do Kaiser e a Proclamação da República, o governo ficou nas mãos dos dirigentes mais conservadores da social-democracia, que fizeram um pacto com o estado-maior militar para liquidar o levante dos operários da Liga Spartacus, núcleo inicial do Partido Comunista Alemão. Em 15 de janeiro, um destacamento de soldados prendeu Liebknecht e Rosa, que lideravam o levante. Foram levados para o Hotel Éden, quartel-general dos Freikorps — veteranos do exército do Kaiser —, no centro de Berlim, paramilitares com os quais o governo social-democrata havia feito um acordo para reprimir a insurreição. Os dois líderes foram espancados, arrastados e mortos a tiros. O trauma da guerra dividiu a esquerda mundial, principalmente depois de Revolução Russa, e nunca mais foi superado.

Lula x Bolsonaro

Aqui no Brasil, erro igualmente trágico ocorreu às vésperas do golpe militar de 1964. João Goulart havia assumido o governo como vice de Jânio Quadros, que renunciara em 1961, em meio a forte crise institucional, na qual os militares não queriam dar-lhe posse. Houve um acordo para isso: a adoção do parlamentarismo. A posse de Jango fora garantida pela confluência de uma grande mobilização popular, liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, e uma hábil articulação parlamentar, na qual se destacaram Tancredo Neves e San Tiago Dantas. Para recuperar parte do poder, Jango viria a convocar e vencer um plebiscito para a volta do presidencialismo, realizado em 6 de janeiro daquele ano.

As eleições presidenciais estavam convocadas para 1965. Os candidatos mais fortes eram Juscelino Kubitschek, do antigo PSD, que pretendia voltar ao poder, e Carlos Lacerda, o governador da antiga Guanabara, principal líder da UDN. Brizola não podia ser candidato, era cunhado do presidente da República. Prestes articulava a reeleição de Jango. A chave para isolar a UDN e evitar o golpe era recompor a aliança entre o PSD, o PTB e o antigo PCB, que havia sido vitoriosa em 1955. Mas a esquerda considerava isso um retrocesso, por causa da política de conciliação de Juscelino com os Estados Unidos. No auge da guerra fria, o desfecho da crise foi a destituição de Jango e a implantação do regime militar, que durou 20 anos. Juscelino e Lacerda apoiaram a destituição de Jango, mas acabaram tendo os direitos políticos cassados.

Perguntem ao ex-governador João Doria, candidato do PSDB: quem é o seu adversário principal? A mesma pergunta pode ser feita a Simone Tebet (MDB) ou a Ciro Gomes (PDT), que continuam na pista. Não quererão responder agora. Eduardo Leite e Sergio Moro, sem legenda para concorrer, também. O problema da terceira via não é somente chegar a um acordo em torno daquele que for mais competitivo. Se fosse, hoje, o candidato único seria Ciro Gomes, como poderia ser Moro, se não houvesse tropeçado na própria esperteza ao trocar o Podemos pela União Brasil.

A unificação da terceira via tem um polo centrípeto: a questão da democracia. Bolsonaro defende um projeto de “democracia restrita”, ou “iliberal”, como agora se diz. Contra esse projeto se batem todas as forças que defendem a nossa “democracia ampliada”, consagrada na Constituição de 1988. Mas isso é considerado assunto para o segundo turno. O xis da questão é polo centrífugo: quem é o adversário a ser deslocado no primeiro turno. Pela lógica das pesquisas, o segundo colocado, Bolsonaro, seria mais fácil de remover da disputa do que Lula, o primeiro. Entretanto, a terceira via desloca sua linha de tiro de Bolsonaro para Lula, que busca velhos aliados ao centro para inviabilizá-la de vez. (Correio Braziliense – 12/04/2022)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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