Alberto Aggio: O candidato da “conciliação nacional”?

Pelo andar da carruagem, com a chamada 3a via digladiando-se até o sufocamento de todas e cada uma das candidaturas, e com a “polarização” canhestra entre Lula e Bolsonaro, que falseia até mesmo a ideia de uma disputa eleitoral democrática, os avanços possíveis rumo a um sistema eleitoral competitivo e realmente democrático encontram-se bloqueados ou em suspensão, na melhor das hipóteses. O que seguramente leva o país ao regresso e ao atraso, não a uma projeção esperançosa para o futuro.

Com os olhos de hoje, a eleição presidencial de 2022 está definida pela ideia de vingança, por um lado, e, por outro, pela de ameaça ou ainda pela acomodação ao que “está aí”, afinal, ao que “se chegou”. Lula é a própria expressão da vingança mal-disfarçada, com Alckmin na “aba do chapéu. O decantado movimento de Lula ao centro, da forma como está sendo feito, tinha como premissa “quebrar o centro”, isto é, impedir um movimento desafiador vindo do PSDB, partido que mais poderia se opor ao movimento lulista. O movimento de Lula foi cirúrgico, mas nem por isso não deixa de ser falso. Lula, hoje, não precisa se movimentar no sentido declarado: a adesão a ele já é gravitacional – daí também se explica os “deslizes de linguagem” dos últimos dias, derivando para o discurso mais “radical” a lá 1989.

Depois de três anos de “desgoverno”, está mais do que evidente que Bolsonaro é a ameaça real à democracia. De um ponto de vista retórico, projeta permanentemente um sentimento de ameaça a todo momento. Mesmo assim, sua possível reeleição representa o maior perigo à nossa democracia, nesses tempos assustadores nos quais Viktor Orbán consegue vencer uma oposição unificada tardiamente que não conseguiu impedir o quarto mandato do líder da extrema-direita húngara.

Por fim, o cenário dispersivo das propostas anti-polarização não conseguiu galvanizar adeptos suficientes para marcar uma posição que indicasse uma projeção de vitória. Ciro Gomes é a oposição a toda integração à globalização que o país vivenciou. É o candidato anti-Lula na pequena política e o candidato anti-revolução tucana, na grande política. Caso vença viria com ele algo similar ao Peru de Alan Garcia. O PMDB permanece uma força política que atua há muito tempo como um “partido do legislativo” e dificilmente apresentará algum candidato ou candidata. É escandaloso que alguns “analistas da conjuntura” não tenham assimilado isso. O PSD de Kassab se perdeu pelo caminho ao falsear uma possível candidatura e agora parece seguir mansamente a torrente do “centro quebrado” em direção a Lula.

Por fim, o PSDB de Doria parece não ter forças para se unificar porque, no essencial, não consegue dar um passo além daquilo que foi feito de forma exitosa nos governos de Fernando Henrique Cardoso. A liderança de Doria, especialmente pelo que fez nos últimos anos no Estado de São Paulo, expressaria no interior da socialdemocracia brasileira o “choque de capitalismo”, expressão e projeto de Mario Covas no final da década de 1980, quando foi candidato a presidência da República. Obviamente que, nesse campo político-ideológico, não se estará propondo um capitalismo selvagem como foi o da ditadura, mas capitalismo democrático com proteção social. De toda forma, essa disjuntiva, esse “passo além” que Doria vem forçando o PSDB a dar que aparece como ameaça a uma socialdemocracia que não tem sabido revertebrar o seu campo. Trata-se de um tema de “grande política” e não do universo de “simpatias e antipatias” em relação a uma liderança política. Pode-se dizer que, no fundo, é essa a razão da desqualificação e do combate sem tréguas dentro do PSDB (com repercussões para fora dele) contra seu próprio pré-candidato. Não à toa, como candidato ao governo, Fernando Haddad (PT) declara, sem nenhum pejo, que irá abaixar os impostos em São Paulo ao criticar o governo de Doria afirmando que o “aumento de impostos” gerou uma quebradeira de empresas (a pandemia não existiu, obviamente), coincidindo, aliás, com o argumento de Paulo Guedes: “nós somos liberais e não socialdemocratas como o governo de São Paulo, que só pensa em aumentar impostos”.

Contra a “ameaça Bolsonaro” a bandeira da “frente ampla democrática” é novamente alçada. É uma bandeira justa e generosa. Hoje ela coincide com os próprios “valores da democracia” e por isso conta com pouca força operativa do ponto de vista político e eleitoral. Ao vocaliza-la, quer se resgatar tanto a generosa, embora fracassada, tentativa de “frente ampla” de João Goulart, Carlos Lacerda e Juscelino Kubstschek, de 1965, quanto o lugar histórico de figuras como de Ulisses Guimarães e Tancredo Neves na “frente democrática” que derrotou a ditadura militar.

Tirante a esquerda que sempre esteve com Lula, a frente democrática teve seus inegáveis méritos, especialmente porque foi operativa e tinha mecanismos institucionais para isso: o MDB como “partido-frente” num sistema eleitoral bipartidário. Seus próceres cumpriam a sina, no dizer de um grande estudioso da política brasileira, de políticos que se sustentavam na “metafísica” da democracia: Estado de direito, respeito à Constituição e às leis, defesa das instituições e das regras democráticas, etc… Sua força não vinha do “mundo dos interesses”, da “física do social”. Depois de derrotada a ditadura, de conquistada a Constituição de 1988, de incontáveis avanços institucionais democráticos, foi esse último mundo que venceu e o primeiro, mal-amado, encontrasse, como no resto do mundo, em crise profunda.

Com tudo isso, aos olhos de hoje, Lula é, em expectativa, mesmo que não queira, mesmo que, de fato, não o seja, o candidato da “conciliação nacional” contra a ameaça Bolsonaro. Há quem sempre abjurou a fórmula da “frente democrática” e mais ainda a de um “candidato de conciliação nacional”, mas hoje não vê problemas em ungir Lula como tal. Os intelectuais petistas ou filopetistas (e mesmo os simplesmente lulistas) não gostam nada desses termos, mas o utilizam com felicidade contida porque sabem que lhes será útil. Mas seria produtivo cobrar “metafísica” de um Lula que se conhece em prosa e verso? (Publicado originalmente em Horizontes Democráticos – 09/04/2022)

Alberto Aggio, professor titular de História da UNESP (Universidade Estadual Paulista) de Franca-SP

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