Felipe Salto: Quem quer dinheiro?

No último dia 13, ao ser entrevistado no programa Roda Viva, da TV Cultura, falei à jornalista Vera Magalhães que estávamos diante de uma política fiscal destrambelhada. O teto de gastos, única âncora ativa, foi alçado. Além disso, o chamado orçamento secreto, revelado pelo Estadão, não teve reação institucional à altura. Em 2022, haverá até R$ 36 bilhões para gastos pulverizados. É a lógica do Silvio Santos no orçamento público: “quem quer dinheiro”?

A Instituição Fiscal Independente (IFI) calculou que o rombo no teto de gastos se combinou com o calote nos precatórios e nas sentenças judiciais para abrir espaço fiscal de quase R$ 118 bilhões em 2022. Esse número poderá ser um pouco menor, a depender da inflação de 2021 (que conheceremos no início de janeiro). De todo modo, contabilizados os gastos já anunciados ou aprovados (caso do Auxílio Brasil), sobrariam cerca de R$ 36 bilhões para despesas extras.

Isso explica a correria com projetos que aumentam o volume de recursos para os partidos e que tais. A sanha para gastar, da qual tratei em várias ocasiões neste espaço, ganhou corpo com a PEC dos Precatórios (Emendas Constitucionais – ECs n.º 113 e n.º 114). A motivação nunca foi o gasto social, mas, sim, a abertura de espaço orçamentário para jogar dinheiro público para o alto.

O orçamento previsto inicialmente para o Bolsa Família era de cerca de R$ 35 bilhões para 2022. A polpuda “xepa da PEC” equivalerá a mais do que o orçamento inteiro desse programa. Se a inflação do fim do ano ficar abaixo da considerada pela IFI neste momento (10,4%), ainda assim sobrariam cerca de R$ 26 bilhões (e não R$ 36 bilhões). Mas como serão gastos esses recursos?

As emendas de relator-geral abarcaram, nos últimos anos, as mais variadas demandas, inclusive pedidos do próprio Poder Executivo. Há gastos meritórios nessa salada de recursos, sim, mas o ponto central é a falta de transparência e de critério na sua distribuição. Trata-se de dinheiro público. O tratamento deve ser o mais aberto possível.

Se há demanda – legítima – por maior ingerência no orçamento, o Legislativo já tem dois instrumentos constitucionais: as emendas individuais (EC 86) e as emendas de bancada parlamentar (EC 100). Os puxadinhos do relator-geral são o maior disparate de que se tem notícia em matéria de orçamento público na história recente. E já ocorrem há vários anos (ainda que, antes de 2019, em menor proporção).

No relatório final da Comissão Mista de Orçamento (CMO) do Congresso, há R$ 16,5 bilhões para emendas de relator-geral. Para isso, no relatório, revisam para baixo as projeções de gastos obrigatórios, confirmando o uso de parte do espaço escondido nas estimativas mais altas do Executivo. Essa confusão era previsível. Fiz o alerta.

Ou bem se moderniza o processo orçamentário ou retrocederemos à era das cavernas em termos de contabilidade pública. Todos os avanços promovidos pelas reformas dos anos 1980 e 1990 – a exemplo da extinção do orçamento monetário, do controle da inflação, da Lei de Responsabilidade Fiscal, da adoção da tecnologia de informação na execução e no controle dos gastos públicos, dentre outros – poderão escoar pelo ralo. É difícil construir e fácil botar tudo a perder.

Muito se discutiu sobre o calote nos precatórios e a mudança do teto para poder cumpri-lo: pedaladas fiscais. Mas o quadro é mais grave. Essa forma e esse ritmo de alteração da Constituição, como quem escreve em papel de pão, torna instável – e pouco previsível, portanto – o quadro geral das contas públicas.

Quem vencer as eleições de 2022 terá pouquíssimo tempo para iniciar a reconstrução. O risco de romper o teto de gastos ou de uma virada de mesa nas regras do jogo, que se costumava associar a alguns cenários possíveis para as eleições de 2022, já não existe. O salto duplo carpado foi a PEC dos Precatórios.

O desafio, agora, é pensar em como harmonizar o arcabouço fiscal, reestruturar o teto de gastos e planejar as ações urgentes de políticas públicas na área social. O País está em frangalhos, o mercado de trabalho não dá sinais de melhora efetiva e as projeções para o PIB do ano que vem circundam 0,5%.

O orçamento é o esqueleto do Estado. Sem ele, as leis e a Constituição não param de pé. Quando o processo orçamentário é tratado como uma feira livre, com regras ad hoc e práticas pouco transparentes, perde-se a capacidade de controle, de prestação de contas e de resposta aos anseios da população.

A chuva de dinheiro em gastos espalhados poderá confirmar as piores expectativas. O meteoro dos precatórios e o gasto social foram desculpas perfeitas para emprestar ares de correção a esse destrambelho. Para ter claro, nem um centavo foi cortado para viabilizar os gastos novos. A responsabilidade fiscal, também sob esse aspecto, foi gravemente abalada.

No auditório do Silvio Santos, o dinheiro é dele. Ele joga para o alto quando lhe dá na telha. No orçamento público, os recursos são da coletividade. Sua distribuição, de acordo com as leis, deveria ser sagrada. (O Estado de S. Paulo – 21/12/2021)

FELIPE SALTO, DIRETOR-EXECUTIVO E RESPONSÁVEL PELA IMPLANTAÇÃO DA IFI. AS OPINIÕES NÃO VINCULAM A INSTITUIÇÃO

Leia também

O padrão a ser buscado

É preciso ampliar e replicar o sucesso das escolas...

Parados no tempo

Não avançaremos se a lógica política continuar a ser...

Reforma tributária será novo eixo da disputa política

NAS ENTRELINHASSe a desigualdade é grande e a riqueza...

Vamos valorizar a sociedade civil

Os recentes cortes promovidos pelo Governo Federal, atingindo em...

Petrobrás na contramão do futuro do planeta

Na contramão do compromisso firmado pelo Brasil na COP...

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!