Fernando Gabeira: Democracia brasileira, coitadinha

Um relatório divulgado em Estocolmo pelo Idea (Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral) aponta a decadência da democracia brasileira.

Na semana passada, escrevi um longo artigo sobre isso. Reconheço que Bolsonaro é um dos principais responsáveis, da gestão da pandemia aos ataques à imprensa e ao STF. No meu entender, contudo, Bolsonaro não inventou a decadência da democracia brasileira. Apenas aproveitou-se dela para aprofundá-la ainda mais com seus impulsos autoritários.

Gostaria de anotar alguns pontos que escapam ao radar dos grandes observadores internacionais, coisas miúdas do cotidiano, que, de certa maneira, são o dínamo da decadência, pois têm o poder de arruinar o apoio popular à democracia.

O clima de Brasília mudou nos últimos tempos. Formou-se uma frente bastante ampla de parlamentares, e até setores da Justiça, destinada a favorecer a impunidade.

Durante muito tempo, vigorou o orçamento secreto, uma aberração no sistema democrático. Em menos de dois meses, surgiram duas propostas de emenda constitucional com o mesmo apelido: PEC da Vingança. Uma delas visava ao Ministério Público; a outra, ao próprio STF. Nesta última, então, a vingança parecia mais explícita: queriam aposentar exatamente a ministra Rosa Weber, que bloqueou o orçamento secreto.

É vingança, vingança, vingança, como dizia a antiga canção popular. No momento, discutem a vingança que impediu a sabatina de um candidato ao STF: André Mendonça. Foi indicado por ser terrivelmente evangélico, e querem que a sabatina seja realizada no Dia do Evangélico.

Não pode haver impedimento a um evangélico em qualquer cargo do governo. Mas escolher um ministro apenas por sua fidelidade a uma confissão religiosa distorce completamente o sentido de formação de um tribunal superior baseado no saber jurídico.

Por falar em Justiça, aqui e ali surgem casos de pessoas presas por roubar comida. Em Minas, estava presa desde julho uma mulher acusada de roubar água da Companhia de Saneamento de Minas Gerais.

Enquanto isso, o senador Flávio Bolsonaro consegue no STJ anular todas as provas contra ele acumuladas pelo Ministério Público do Rio. É um trabalho de Sísifo: recolhem-se as provas, e as instâncias superiores mandam jogá-las no lixo.

A própria campanha presidencial, que teoricamente aponta para o futuro, apresentou problemas no trato com a democracia. Bolsonaro visitou os Emirados Árabes e o Bahrein e relativizou as ditaduras do Oriente Médio.

Por sua vez, Lula, em Madri, comparou Daniel Ortega com Angela Merkel e não aceitou a tese de que é possível ser contra o embargo americano a Cuba e, simultaneamente, condenar a repressão às manifestações políticas na Ilha.

Entre os livros que saíram sobre o declínio da democracia, logo após a eleição de Trump, um deles pode ser usado ao alinhar tantas pequenas preocupações. Chama-se “O povo contra a democracia”, de Yascha Mounk. O livro mostra como “o toma lá dá cá” da política exclui o povo da tomada de decisões, criando um sistema de direitos sem democracia.

Aventureiros do tipo Bolsonaro prometem restituir o poder ao povo lutando contra as instituições, dispostos a criar uma democracia sem direitos.

Por isso sempre relembro que a política mesquinha e autorreferenciada que se faz em Brasília é, no fundo, uma política suicida. Favorecer um processo de decadência que coloque o povo contra a democracia cairá na cabeça de todos nós, menos, é claro, na do ditador de plantão e de sua tropa de apoio.

Com as mudanças que uma campanha presidencial promete, será possível reduzir o abismo entre o sistema político e o povo? Uma questão-chave é como se relacionar com o Parlamento sem ser engolido pela voracidade fisiológica ou bloqueado pela sabotagem destrutiva.

É uma linha muito tênue, um desafio a nossa sobrevivência como regime democrático. (O Globo – 29/11/2021)

Fernando Gabeira, jornalista

Leia também

Brasil safado de Madonna é negação do conservadorismo

NAS ENTRELINHASFãs revelam uma identidade coletiva na qual representam...

O padrão a ser buscado

É preciso ampliar e replicar o sucesso das escolas...

Parados no tempo

Não avançaremos se a lógica política continuar a ser...

Vamos valorizar a sociedade civil

Os recentes cortes promovidos pelo Governo Federal, atingindo em...

Petrobrás na contramão do futuro do planeta

Na contramão do compromisso firmado pelo Brasil na COP...

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!