Dos nossos 500 anos, 350 foram sob sistema escravocrata. As consequências foram trágicas para a saúde econômica, social, política e cultural do Brasil. Somos um país formado, forjado e viciado no sistema escravocrata, dividindo a sociedade entre pessoas incluídas e excluídas, estas até hoje identificadas com a raça negra. Mesmo a decisão de abolir o sistema escravocrata não eliminou o preconceito contra nossos compatriotas negros. Quando se observa o tratamento dado aos trabalhadores pobres e o racismo que se mantém 133 anos depois da abolição, o Brasil é um país de escravismo ainda não superado totalmente. Os séculos consolidaram o preconceito e formaram o racismo.
A principal causa vem da desigualdade, como a educação de base é oferecida no Brasil conforme a renda da família, e ao fato de que muitas das famílias de baixa renda são negras. A escola das classes média e alta é diferente da escola dos pobres, e, em consequência, a escola dos brancos é diferente da escola dos negros. O sistema escolar brasileiro segrega brancos e negros, por força da desigualdade na renda, salvo raros destes que ascenderam economicamente e não são mais recusados nas escolas da elite. Apesar das leis que tentam quebrá-lo, o preconceito cresce porque as raças não se misturam em escolas de qualidade.
Agravando o racismo, as escolas com qualidade beneficiam os brancos no momento do ingresso no ensino superior e, por isso, a elite intelectual é branca, fortalecendo o preconceito e o racismo. É como se os brancos, por terem renda, tivessem cotas, reservando para eles quase todas as vagas no ensino superior de qualidade: ao pintar de branco a cara da elite, a universidade se transforma em fábrica de preconceito e de racismo.
O caminho correto para superar o preconceito e o racismo é a implantação de um Sistema Nacional Público Único de Educação de Base que ofereça a mesma escola para ricos e pobres e, portanto, para negros e brancos, desde a primeira idade. Quando isso ocorrer, o preconceito e o racismo desaparecerão pela convivência entre brancos e negros na mesma escola básica, e também porque o ingresso na universidade passará a ser disputado nas mesmas condições, não mais conforme a renda, e em consequência conforme a cor. Quando as escolas tiverem a mesma qualidade, a cor da cara da elite terá a variedade das cores da cara do povo brasileiro.
A elite econômica sabe do risco que isso provocará aos seus interesses e, ainda que esteja contra o racismo, continua a favor do rendismo aplicado às escolas. Embora contrário no racismo, desejam manter o rendismo como forma de segregação escolar. Até mesmo os raros negros que ascenderam socialmente parecem desmotivados para a implantação de um Sistema Único de Educação que atenda pobres e ricos com a mesma qualidade.
Enquanto o Brasil não tiver um sistema educacional que não discrimine crianças conforme a renda, será preciso reservar vagas nas universidades para negros, de maneira a impedir a atual reserva de quase todas elas para os brancos, como tem ocorrido ao longo da história. Para isso, precisamos redondear as escolas, dando-lhes a mesma qualidade. As cotas para negros ingressarem na universidade não vão abolir o racismo, mas vão diminuir o preconceito, à medida que a sociedade começa a se acostumar com profissionais negros de nível superior. O preconceito diminuirá se nossos melhores médicos e cientistas forem negros, nosso primeiro Prêmio Nobel for negro, como é Pelé, graças ao fato de a bola ser redonda para todos, brancos, negros, ricos e pobres. Cotas para negros são necessidade nacional, não benefício individual para o jovem negro que concluiu médio e graças a isso se classificou no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ou no vestibular pelo sistema de cotas.
Enquanto a sociedade não aceita implantar um Sistema Nacional Publico Único de Educação de Base, devemos agradecer ao jovem que teve o talento de chegar na universidade usando a cota. Quem se beneficia é o país, ao dar um toque de preto na cara da elite e quebrar um pouco o preconceito racial, entranhado no Brasil. Se fosse para beneficiar o indivíduo negro que usa a cota, o indivíduo branco que se sente preterido teria o direito de reclamar ser preterido, mas quando um jovem branco entra na universidade, ele não reduz o preconceito racial, o jovem negro se formando ajuda a reduzir.
Por isso, a cota para negros ingressarem no ensino superior tem que permanecer até quando o preconceito desaparecer, depois da implantação do Sistema Nacional Público Único de Educação de Base. (Correio Braziliense – 30/11/2021)
Cristovam Buarque, professor Emérito da UnB (Universidade de Brasília) e membro da Comissão Internacional da Unesco para o Futuro da Educação