Fernando Gabeira: Uma pausa para a emergência

Neste momento em que a confusão política é menos intensa, observo que, nos grupos que sigo nas redes sociais, há um sério debate sobre o futuro do país. Sinto não participar ativamente por falta de tempo e, às vezes, boa conexão.

Não tem mais validade aquele verso de Drummond: “Ao telefone perdeste muito tempo de semear”. As pessoas estão semeando ideias, e espero que um dia sejam levadas à prática, embora a mediação do mundo político real tenda a neutralizá-las.

De minha parte, se pudesse contribuir agora, tentaria levar mais diretamente ao mundo político a ideia de uma emergência ambiental. Não há trégua nesse campo. Bolsonaro pode, apesar da relutância, aceitar a vacinação, atenuar suas frases no cercadinho, esquecer, momentaneamente, o voto impresso. Mas seu projeto de devastação dos recursos naturais é diuturno, não para nos feriados, nem com bloqueio de caminhoneiros.

Na sua cabeça, não é uma política destrutiva. Pensa na riqueza material, num conceito de progresso. Possivelmente, assim pensava a elite capixaba quando arrasou a Mata Atlântica, processo magistralmente descrito por Warren Dean no livro “A ferro e fogo — A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira”.

Agora, as cidades do Oeste de Santa Catarina decretaram emergência por causa da seca, o reservatório de Ilha Solteira, em São Paulo, está no nível mínimo, e a Chapada dos Veadeiros arde em Goiás.

Não se trata de abordar a emergência apenas pelo ângulo planetário com base nos dramáticos relatórios da ONU. É possível partir daqui de dentro para o mundo. O Brasil está secando, perdermos 15,8% de nossa água doce em três décadas. Os incêndios no Pantanal mataram 17 milhões de animais.

E essa matança pelo fogo se completa com as balas. Como diz um morador da Serra da Bodoquena, agora que as armas são mais acessíveis:

— Morrem onças porque comem o gado; queixadas e catetos, porque comem o milho; antas e pacas, porque a carne é boa.

No momento em que acabo de concluir uma série de programas para uma temporada, sinto-me atraído pela possibilidade de documentar a crise hídrica, que considero histórica. Não no sentido comum, pela simples comparação de níveis dos rios e reservatórios e intensidade de chuva, uma espécie de variação dentro de um fenômeno regular.

Considero a crise histórica porque representa um momento de inflexão. Nunca mais seremos o país com riqueza de matas e abundância de água como costumamos nos imaginar. Todos os grandes biomas brasileiros estão sob ataque.

Não tenho outro caminho, exceto documentar essa perda. Nem há exílio possível. Conheci as asperezas do exílio, estudei o tema mais amplamente no livro de Maria José de Queiroz “Os males da ausência — Ou a literatura do exílio”. Pessoalmente, encontrei exilados que eram órfãos de um Estado, como os palestinos, os eritreus.

Mas é difícil imaginar o exílio de um país que deixou de existir, não como unidade política, mas como entidade física, sem a beleza e a exuberância que não só encantam o mundo, mas nos ligam a ele.

Ainda haveria tempo de buscar o desmatamento zero na Amazônia, de recuperar as principais bacias hidrográficas, de estancar a matança no Pantanal, a destruição do Cerrado, a liquidação do que restou da Mata Atlântica. Isso podia suscitar também uma grande cooperação internacional.

Mas o que predomina hoje no governo e, infelizmente, entre os militares, é uma certa noção de progresso e uma grande desconfiança em relação ao mundo. O Brasil vai se tornar um espelho de seu universo mental.

Pelo menos, é possível documentar a tragédia, à espera de uma tomada de consciência, algo que os eventos extremos já estão provocando no mundo.

A emergência ambiental figura no topo da agenda de alguns líderes mundiais. A preservação da Amazônia é uma aspiração da maioria do nosso povo. Vamos esperar que, por algum milagre, isso seja um tema nas eleições de 2022 e que funcione como mais uma pedra no sapato de Bolsonaro.

O Brasil pode se tornar a imagem da extrema direita, mas será tão árida quanto a alma dessa corrente política. (O Estado de S. Paulo – 20/09/2021)

Fernando Gabeira, jornalista

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