Luiz Carlos Azedo: O quid pro quo do voto eletrônico

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

A expressão latina quid pro quo significa uma coisa pela outra. Por essas voltas que o mundo dá, foi traduzida do holandês (dit for dat, este por esse) para o inglês como tit for tat, ou seja, na mesma moeda ou taco a taco. Na teoria dos jogos, a estratégia tit for tat tem um lugar de honra, graças aos estudos do cientista social Robert Axelrod, da Universidade de Michigan, Estados Unidos, que promoveu um torneio no qual os participantes teriam de apresentar programas de computadores nos quais haveria apenas duas opções: trair ou cooperar. O detalhe é que cada dupla de participantes jogaria 200 partidas, nas quais, aparentemente, a melhor opção seria trair enquanto o outro coopera; a pior, cooperar enquanto o outro trai. Para sua surpresa, o melhor desempenho, ao final de todas as rodadas, foi para quem adotou uma estratégia simples: o tit for tat. Nesse cenário, o jogador sempre começava cooperando, depois respondia na mesma moeda: traia, se fosse traído; cooperava, se houvesse cooperação.

A estratégia é diplomática: começa sempre cooperando. Mas é muito vingativa, porque não perdoa a traição, ao retaliar imediatamente. Entretanto, é generosa, porque retribui com a cooperação se o outro se arrepender e cooperar. Além disso, desde o início, é muito transparente, porque permite que o oponente entenda rapidamente quais são as regras do jogo e se dê conta de que é melhor cooperar. O presidente Jair Bolsonaro não percebeu, ainda, que está levando um baile do ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ao abrir guerra contra a urna eletrônica, com pronunciamentos diários que levantam suspeitas em relação a fraudes nas eleições que só existem em sua fértil imaginação.

A teoria dos jogos, particularmente o “dilema do prisioneiro”, há muito tempo deixou de ser monopólio dos físicos e matemáticos. É estudada amplamente nas escolas de direito, principalmente no direito penal, tanto ou mais do que nas escolas de estado-maior das Forças Armadas, que Bolsonaro não frequentou. É nesse contexto que deve ser examinada a decisão unânime do TSE ao abrir inquérito para investigar os ataques de Bolsonaro à legitimidade das eleições. Isso pode resultar na impugnação de sua candidatura à reeleição por aquela Corte, se vier a ser condenado. O pedido encaminhado ao Supremo Tribunal Federal (STF) para incluir as declarações de Bolsonaro contra a urna eletrônica no inquérito das fake news, também. São dois movimentos distintos, em pinça, como nas operações de cerco e aniquilamento. Ou seja, não foi Bolsonaro que dobrou a aposta, foi Barroso.

Segunda frente

No TSE, o inquérito administrativo será conduzido pelo corregedor do tribunal, ministro Luís Felipe Salomão, em caráter sigiloso. Serão investigados crimes de corrupção, fraude, condutas vedadas, propaganda extemporânea, abuso de poder político e econômico nas declarações de Bolsonaro. Salomão quer dar agilidade às investigações, mas não foi definido prazo para a conclusão. Primeiro, haverá a fase de produção de provas, com o interrogatório de pessoas que ainda não foram definidas. Depois, a juntada de documentos, realização de perícias e outras providências que se fizerem necessárias para a adequada elucidação de provas. Ainda existe a possibilidade de tudo ser anexado às Ações de Investigação Judicial Eleitoral (AIJEs), que tramitam contra Bolsonaro no TSE e que pedem a cassação do mandato da chapa eleita em 2018. Em caso de condenação, portanto, o presidente pode ficar inelegível e, em um quadro mais grave, perder o mandato.

A notícia-crime enviada ao STF é ainda mais adversa para Bolsonaro. O ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito das fake news, deverá decidir se inclui a live de Bolsonaro de quinta-feira passada nas investigações. Moraes presidirá o TSE nas eleições de 2022. Caso inclua as declarações de Bolsonaro no inquérito do Supremo, o ministro determinará as diligências, entre as quais, o depoimento do presidente, a perícia de vídeos apresentados na live ou outras providências. No fim do percurso, o plenário do STF julgará Bolsonaro, daí a cautela do presidente da Corte, ministro Luiz Fux, ao tratar do assunto na reabertura dos trabalhos do Judiciário. O Supremo também vem sendo alvo de constantes ataques do chefe do Planalto.

Outro equívoco de Bolsonaro é não perceber que o grande beneficiário do seu confronto com o Poder Judiciário é o Congresso, que se fortalece nessa disputa e está com a faca e o queijo nas mãos. Seu destino está praticamente nas mãos do Centrão, que não quer briga com o Supremo. Além disso, a principal frente de erosão de seu prestígio popular é a CPI da Covid, no Senado, que sangra o governo. Um estrategista mais arguto no Palácio do Planalto diria que Bolsonaro errou ao escolher o seu inimigo principal. (Correio Braziliense – 04/08/2021)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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