Paulo Sotero: Bolsonaro e Trump em ofensiva contra a democracia

Proximidade de eleições de 2022 no Brasil e nos EUA favorece ações políticas de sabotagem

Os danos causados por Jair Bolsonaro e Donald Trump em seus países e alhures estarão no radar de Joe Biden durante sua primeira missão internacional: a visita que iniciou esta semana à Europa para, em suas palavras, “juntar as democracias do mundo” e renovar o compromisso dos Estados Unidos com seus aliados e parceiros, demonstrando “a capacidade das democracias de responder às ameaças” da nova era.

Se você duvidou que o negacionismo da ciência e a negligência de Bolsonaro e Trump ante a pandemia causariam ou contribuiriam para a morte de mais de 1 milhão de brasileiros e americanos, considere a possibilidade de o Brasil e os Estados Unidos encerrarem o ano que vem com suas democracias desfiguradas por ações deletérias dos mesmos líderes e do ex-chanceler Ernesto Araújo, ventríloquo dos dois líderes, instalado como cônsul-geral em Washington, como já esperado no Itamaraty. Não se trata de especulação, mas de probabilidade, se as forças políticas que apoiam Bolsonaro e Trump tiverem êxito em sua campanha em curso para desacreditar os sistemas de votação de seus países nas eleições que ambos realizarão no ano que vem.

No Brasil, Bolsonaro tem reiterado que não reconhecerá o resultado do próximo pleito presidencial, no qual concorrerá à reeleição, se a votação não incluir uma prova física do sufrágio. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal, descartou essa possibilidade. Em vídeo postado no site do TSE, Barroso lembrou que em 15 eleições realizadas desde 2006 com a urna eletrônica desenvolvida pelo TSE não houve irregularidade ou contestação dos resultados. O ministro lembrou que o sistema é testado regularmente na presença de representantes dos partidos e de hackers internacionais contratados para tentar quebrá-lo: “O sistema é transparente, seguro e auditável”. Seu uso contínuo em todas as eleições realizadas nos últimos 25 anos resultou na vitória de candidatos de todos os matizes políticos. A comprovada qualidade do sistema na coleta e apuração de votos não garante, porém, a escolha de bons governantes – um problema das regras partidárias, não da urna eletrônica, que é considerada confiável pelos eleitores.

Nos Estados Unidos o voto é facultativo, o sistema de votação é descentralizado, as eleições são organizadas pelos Estados e não há um órgão federal supervisor como o TSE. Em contraste com o Brasil, não há aceitação popular do voto em urna eletrônica, sem prova física. É a esse ponto que Bolsonaro, provavelmente, se apegará para tentar melar as eleições de outubro do ano que vem, se perder. Nisso segue o exemplo de Trump.

As vulnerabilidades do sistema americano estão à vista desde as eleições do ano 2000, em que o vice-presidente Albert Gore ganhou na votação popular, mas perdeu para o republicano George W. Bush no colégio eleitoral, que reflete o tamanho da população dos Estados e decide o resultado. A inversão entre os resultados do colégio eleitoral e da votação popular repetiu-se no pleito de 2016, ganho por Trump. Mas ele não aceitou a vitória de Biden em novembro último e insuflou seus adeptos a invadirem a sede do Congresso no dia 6 de janeiro, quando ali se realizava a verificação e validação dos resultados das eleições nos Estados, como prevê a Constituição. Cinco pessoas morreram na confrontação, milhares foram detidas e centenas aguardam julgamento. Mas a atitude negacionista de Trump em relação à sua derrota rendeu. Desde então ela ganhou o respaldo de quase três quartos dos eleitores republicanos. Por quê? Cientes de que a demografia tornará os americanos brancos minoritários no decorrer da próxima década, os republicanos, fiéis a Trump, empenham-se agora em alterar as regras do jogo. Este ano apresentaram mais de 400 propostas de mudança das leis eleitorais nos Estados em que controlam as Assembleias Legislativas. As mudanças visam a criar obstáculos à participação crescente das mulheres, dos jovens e de membros das minorias raciais – negros, latinos e asiáticos –, que vêm alterando o perfil demográfico do eleitorado em favor dos democratas, como aconteceu em novembro passado na Geórgia. Estado conservador, a Geórgia elegeu um judeu e um negro para o Senado e deu o mando da casa aos democratas, a despeito das táticas trumpistas de intimidação de eleitores pela presença física de patotas vociferantes nas proximidades das seções de votação e da brutalidade policial contra os negros em confrontações de rua.

Historicamente, o partido que controla a Casa Branca vai mal nas eleições parlamentares que se seguem às presidenciais. É plausível, assim, que democratas percam sua exígua maioria no Congresso no ano que vem – fato que, se ocorrer, levará água ao moinho de Trump e, por tabela, de Bolsonaro. Um cenário de milícias armadas presentes em postos de votação já não é algo impensável no Brasil, menos ainda num cenário em que eleições nos dois países serão realizadas na mesma época, com a campanha nos Estados Unidos repercutindo inevitavelmente em Pindorama. (O Estado de S. Paulo – 14/06/2021)

PAULO SOTERO, JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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