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José Serra: Populismo com FGTS

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Segundo foi anunciado, serão admitidos saques periódicos de parte dos recursos depositados no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), com o propósito de estimular a atividade econômica em curto prazo. É uma medida heterodoxa, apesar de promovida por uma equipe que se considera ortodoxa: elevar o consumo subtraindo recursos para financiar investimentos. Expande- se a demanda das pessoas por bens e serviços à custa do encolhimento potencial das operações de investimentos subsidiadas pelo fundo. Não é por menos que porta-vozes das empresas de construção habitacional assumiram atitude crítica diante do anúncio. A nova equipe econômica vem aos poucos mostrando que pretende realizar mudanças permanentes no FGTS. Na origem, há mais de meio século, esse fundo destinava-se a substituir as indenizações que os assalariados recebiam das empresas quando eram demitidos “sem justa causa”.

Seu financiamento provinha, como ainda provém, dos depósitos mensais das empresas equivalentes a 8% dos salários, em favor dos trabalhadores. Outra possibilidade, introduzida no contexto do FGTS, foi o direito ao saque do dinheiro do fundo pelos trabalhadores que se aposentassem ou adquirissem “casa própria”. Como curiosidade vale lembrar que um dos criadores do FGTS, em 1966, foi o então ministro do Planejamento, Roberto Campos, avô do atual presidente do Banco Central. Mas nessa matéria a atual agenda “reformista” é bem diferente da das últimas décadas, que criou e ampliou o papel e a importância do fundo citado. Trata-se de uma fonte de recursos perenes e de longo prazo para as políticas públicas na área habitacional e de infraestrutura. O FGTS, instituído por lei em 1966, alcançou o patamar de direito social constitucional na Carta Magna de 1988. De fato, os sucessivos governos foram ampliando o papel desse fundo ao longo dos anos.

Criado originalmente, como disse, para servir de poupança do trabalhador, protegendo-o em épocas de crise e demissões, o FGTS passou por uma reformatação em 1991. Seus recursos passaram a apoiar – além de habitação popular – políticas de investimentos em infraestrutura, em especial no setor de saneamento. Em 2007 chegou a ser introduzido na sua estrutura um fundo especial de investimento, o FI-FGTS, com mandato para investir em empreendimentos em setores como aeroportos, energia, rodovias, ferrovias, portos e saneamento. As contas individuais do FGTS dos trabalhadores são corrigidas monetariamente pela Taxa de Referência (TR), que também atualiza os saldos dos depósitos de poupança, e são capitalizadas a juros de 3% ao ano. Ou seja, rendem TR + 3% ao ano. Essa taxa de remuneração permite ao FGTS conceder subsídios ao financiamento de dois setores importantes para o desenvolvimento social do País, construção civil e saneamento, que proporcionam empregos e ampliam a oferta de moradias e de acesso à água tratada e ao esgoto.

Em setembro do ano passado o patrimônio do FGTS alcançou R$ 520 bilhões. As operações de crédito do fundo correspondem a dois terços desse valor. São R$ 305 bilhões aplicados em financiamentos habitacionais, R$ 36 bilhões em infraestrutura e R$ 2,5 bilhões até em refinanciamentos de dívidas estaduais e municipais. Em 2017 os custos dessas operações foram, na média, de 4,9%, 6,2% e 5,6%, respectivamente. Muito abaixo das taxas que seriam cobradas pelo mercado. A propósito, as Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste são as mais beneficiadas pelo programa Minha Casa, Minha Vida, baseado em recursos do FGTS, criado em 2009 com objetivo de conceder subsídios para beneficiar famílias com renda mensal de até R$ 2.790. São descontos habitacionais associados a 22 empregos para cada R$ 1 milhão investido. De 2009 a 2019 a carteira de empreendimentos contratados chegou a R$ 372 bilhões. Mais de 8 milhões de empregos criados.

Grupos políticos e especialistas costumam fazer reparos à taxa que remunera os recursos depositados no FGTS, que, afinal, pertencem aos trabalhadores. Para eles, esse dinheiro deveria render juros de mercado. Há quem defenda também a maior liberação dos saques dos recursos depositados no fundo, apostando na redução do seu patrimônio ou até mesmo na extinção – integrantes do atual governo parecem tomar posição a favor desse tipo de medidas. Por sorte, a maioria do Congresso e a força da opinião pública têm inibido as ofensivas nessa direção. O que não é dito nas explicações mais ligeiras é que o FGTS precisa de liquidez para fazer frente a eventuais excessos de saques.

A elevação da rentabilidade e a liberação excessiva dos depósitos reduzem os subsídios concedidos por esse fundo. É simples: a necessidade de maior liquidez ou a redução do spread – diferença entre a taxa de retorno das aplicações e a taxa de remuneração das contas vinculadas dos trabalhadores – afetam as disponibilidades de caixa para aplicações. Como alternativa só restaria elevar o custo das operações de crédito. O fato é que a arrecadação líquida do FGTS tem sido cada vez menor desde 2014, como parte dos efeitos da crise econômica. Naquele ano os depósitos superaram os saques em R$ 18,4 bilhões.

Com saques e demissões, essa diferença caiu para R$ 4,9 bilhões em 2017. Ações para liberar os recursos do FGTS podem contribuir ainda mais para a redução da sua arrecadação líquida, fazendo o fundo ficar menos potente para operações de crédito subsidiado. É preciso lembrar que os saques são realizados pelos trabalhadores mais em razão de demissões sem justa causa e de aposentadoria. E 84% dos cotistas do FGTS têm saldo acumulado de até um salário mínimo. Criar uma modalidade permanente de saques das contas do FGTS é uma medida populista que compromete investimentos subsidiados pelo fundo e deixará a maioria dos trabalhadores sem recursos na demissão e na aposentadoria. (O Estado de S. Paulo – 25/07/2019)

JOSÉ SERRA, SENADOR (PSDB-SP)

País abre 48,4 mil vagas com carteira assinada, melhor resultado para junho desde 2013

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A criação de empregos com carteira assinada teve saldo positivo em junho, com a criação de 48.436 vagas. Os dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) foram divulgado nesta quinta-feira (25) pelo Ministério da Economia.

O indicador mede a diferença entre contratações e demissões. O saldo positivo em junho foi resultado de 1.248.106 admissões contra 1.199.670 desligamentos ocorridos no período.

O resultado de junho foi o melhor para o período desde 2013, quando, no mesmo mês, foram geradas 123.836 vagas. Em junho de 2018 foram registradas mais demissões do que contratações, gerando saldo negativo de 661 vagas.

No primeiro semestre deste ano, foram criados mais 408.500 postos de trabalho ( 8.221.237 admissões e 7.812.737 desligamentos), o maior saldo para o período desde 2014 quando foram criadas 588.671 vagas. No mesmo período do ano passado, o saldo foi de 392.461 vagas.

Setores

Houve crescimento em seis dos oito setores econômicos no sexto mês de 2019. Com aumento no nível de emprego, apareceram agropecuária (22.702 vagas criadas), administração pública (483 postos abertos), serviços (saldo positivo de 23.020 vagas), construção civil (13.136 vagas abertas), serviços industriais de utilidade pública (2.525 postos criados) e extrativa mineral (565 vagas abertas).

Por outro lado, houve corte de 10.988 pontos na indústria e fechamento de 3.007 vagas no comércio.

Regiões

O Sudeste puxou a criação de vagas em junho, conforme o Caged. A região registrou um saldo líquido positivo de 31.054 postos no período.

Em seguida, apareceram Centro-Oeste (criação de 10.952 postos), Nordeste (5.142 vagas) e Norte (4.002 postos).

Já a região Sul foi a única a registrar saldo negativo, com o fechamento de 2.714 postos. (Com informações das agências de notícias)

Arnaldo Jardim será relator de comissão especial que irá rever normas de PPPs e concessões

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O deputado federal Arnaldo Jardim (Cidadania-SP) será o relator da comissão especial do Congresso Nacional que vai aperfeiçoar o projeto (PL 3.453/2008) das PPPs (Parcerias Público-Privadas), Fundos de Investimentos em Infraestrutura e Concessões Públicas. O colegiado será lançado no dia 6 de agosto, às 14h30, em Brasília.

O objetivo da comissão especial é desburocratizar a atual legislação, propondo um novo “marco regulatório” para o setor que, segundo Arnaldo Jardim, será responsável pelo grande investimento na área da infraestrutura do Brasil.

De acordo com o parlamentar, as PPPs representam instrumento de fundamental importância para incrementar os investimentos que serão revertidos em benefício para os cidadãos, principalmente em um momento de crise fiscal como a vivida pelo Brasil atualmente.

“O Estado precisa, mais do que nunca, dinamizar as parcerias com a iniciativa privada”, disse.

Jardim: Legislação dificulta PPPs

Jardim ressalta que a atual legislação tem dificultado a criação de novas PPPs, como conflitos com o Judiciário, que, segundo ele, têm limitado a atuação de alguns municípios à medida em que questionam as cotas de participação em alguns empreendimentos. Também afirmou que há uma necessidade de se discutir limites para a prorrogação de contratos.

“Esta é, sem dúvida, a continuidade de uma agenda positiva para a retomada do crescimento econômico e de geração de empregos que o País tanto anseia”, complementa.

A Comissão promoverá audiências públicas com o setor respectivo e autoridades. Além disso, será proposta a realização de mesas-redondas em algumas capitais, para colher as experiências de Estados e Municípios quanto ao tema.

Veja abaixo o cronograma proposto para os trabalhos da comissão especial.

Agosto

Três audiências públicas, cada uma delas para ouvir representantes de diferentes seguimentos (concessionárias, especialistas e Poder Público).

Setembro

Mesas Redondas em Estados. Audiências públicas temáticas – para aprofundar a discussão. Os debates serão sobre alguns temas específicos, como regras para prorrogação de contratos, estabelecimento de garantias, normas para a caducidade das PPPs e das concessões, criação de condições favoráveis para o financiamento de projetos, diagnóstico das experiências recentes, segurança jurídica nos contratos e papel das agências reguladoras em contratos de infraestrutura.

Outubro

Apresentação da proposta de parecer;

Discussão e votação na Comissão Especial do parecer final.

Bolsonaro, por favor, não veja o #ProgramaDiferente: relembramos aqui os tempos da pornochanchada

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Enquanto o meme que virou presidente se mostra saudoso da censura e da ditadura, em sua cruzada moralizadora fake e uma campanha extemporânea contra o filme “Bruna Surfistinha”, o #ProgramaDiferente, cheio de nostalgia, relembra dos tempos da pornochanchada. Será que éramos felizes e não sabíamos?

Toda uma geração cresceu assistindo a “Sala Especial”, na TV Record, ou indo escondido ao cinema, com RG falsificado. Não existia essa mordomia de internet, com sites de relacionamento, portais e aplicativos para o jovem assistir filmes proibidos. Mas o que foi, afinal, a época da pornochanchada no cinema brasileiro?

Ribamar Oliveira: As incertezas sobre o Orçamento de 2020

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A proposta orçamentária para 2020 será elaborada com a previsão de que não haverá aumento real para o salário mínimo no próximo ano. O valor do piso será reajustado apenas pela inflação, medida pelo INPC. Assim, se o presidente da República assinar medida provisória ou algum parlamentar propuser projeto de lei com aumento real para o mínimo, terá que dizer quais despesas do Orçamento serão cortadas para acomodar a elevação dos gastos previdenciários e assistenciais decorrente do novo valor.

Isto será necessário porque não haverá margem para despesas adicionais, pois a proposta orçamentária será elaborada, como nos anos anteriores, preenchendo todo o teto de gastos criado pela emenda constitucional 95/2016. Esta é uma dificuldade adicional para quem deseja novos reajustes reais para o salário mínimo.

A lei 13.152, de 2015, que dispõe sobre a política para o salário mínimo, perde sua vigência neste ano. Mas, até agora, nem o presidente da República nem líderes parlamentares tomaram a iniciativa de definir uma nova política ou as regras que serão adotadas no futuro para a correção do piso.

O único comando existente, no momento, é o artigo da Constituição que diz que o mínimo deve ser corrigido, anualmente, pela inflação. Como ainda não há lei definindo o valor do piso para 2020 e anos seguintes, o governo usará, na elaboração do Orçamento, apenas o comando constitucional.

Cada R$ 1 de aumento no salário mínimo gera um incremento de R$ 298,2 milhões ao ano nas despesas do governo. Por outro lado, a variação de 0,1 ponto percentual no INPC gera acréscimo de R$ 689,1 milhões nas contas públicas, de acordo com o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO), válida para 2020, em análise pelo Congresso. O valor do salário mínimo é importante, portanto, para estimar as despesas com benefícios previdenciários, com Benefício de Prestação Continuada (BPC), seguro-desemprego e abono salarial. Com um valor maior do piso, as despesas também serão maiores.

A proposta orçamentária não prevê também reajuste para os salários dos servidores dos três Poderes. Nem a criação de cargos pelo Executivo. Mas haverá provimento de cargos e funções no âmbito das Forças Armadas, do Banco de Professor Equivalente do Ministério da Educação e demais cargos e funções vagos, assim como no Legislativo, no Judiciário, no Ministério Público da União (MPU) e na Defensoria Pública da União (DPU).

Há ainda uma grande interrogação na área técnica se o Judiciário e o MPU conseguirão se enquadrar nos respectivos tetos de gasto. A partir do próximo ano, o Executivo não vai mais compensar eventuais estouros do teto dos demais Poderes, como ocorreu até este ano. A situação especialmente desafiadora, como já notou a Instituição Fiscal Independente (IFI), é da Justiça do Trabalho.

Os efeitos fiscais da reforma da Previdência, decorrentes da proposta de emenda constitucional 06/2019, em votação na Câmara dos Deputados, provavelmente ainda não serão considerados. Quando a proposta orçamentária for enviada ao Congresso, em 31 de agosto, a reforma ainda não terá sido votada pelo Senado.

A Secretaria de Previdência estima uma economia de R$ 10,1 bilhões com a reforma no seu primeiro ano de vigência. Assim, a proposta orçamentária para 2020 será elaborada com uma previsão de gasto com benefícios previdenciários superdimensionada.

Depois que a reforma for aprovada pelo Senado, certamente os parlamentares pedirão uma avaliação do impacto da reforma aprovada na proposta orçamentária. O risco é que deputados e senadores resolvam preencher a margem aberta com a reforma promovendo aumentos de despesas em outras áreas, com repercussões no futuro.

Mesmo porque se a proposta orçamentária for elaborada antes da aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2020, ela não virá com o aumento da dotação destinada ao fundo eleitoral, que os deputados e senadores querem elevar para até R$ 3,7 bilhões. Os parlamentares querem incluir a verba no Orçamento do próximo ano para financiar as eleições municipais.

Mais uma vez, o governo não conseguirá cumprir a chamada “regra de ouro” das finanças públicas. Como fez neste ano, o governo incluirá na proposta orçamentária de 2020 um montante de despesas correntes condicionado à aprovação pelo Congresso, no próximo ano, de operações de crédito.

A “regra de ouro” estabelece que o governo só pode elevar o seu endividamento para custear despesas de capital (investimentos, inversões financeiras e amortizações da dívida). Não pode fazer isso para pagar despesas correntes. O montante de despesas a ser coberto por operações de crédito dependerá da reforma da Previdência que for aprovada.

Frustração da meta

No relatório de avaliação das receitas e despesas primárias, relativo ao terceiro bimestre, divulgado na segunda-feira, o governo não demonstrou que é possível cumprir a meta de resultado primário fixada para o setor público consolidado (União, Estados e Municípios) neste ano.

A meta de déficit primário de R$ 132 bilhões foi definida na expectativa de que os Estados e municípios fariam um superávit primário de R$ 10,5 bilhões. O déficit primário da União (Tesouro, Previdência, BC e empresas estatais federais) foi fixado em R$ 142,5 bilhões. Para atingir a meta, portanto, era necessário que os governos estaduais e prefeituras fizessem um superávit naquele montante. Agora, o governo estima que eles farão apenas R$ 200 milhões.

A rigor, o governo federal teria que compensar a frustração da meta de Estados e municípios. Mas isso não foi feito no relatório do terceiro bimestre. O governo alegou que a compensação demandaria contingenciamento de R$ 10,3 bilhões nas dotações dos três Poderes.

“Tendo em vista a severidade dos efeitos de tal contenção”, a compensação não foi feita. O governo alegou que não há obrigatoriedade de compensação das metas. Ou seja, cumprir a meta fiscal para todo o setor público não é obrigação. (Valor Econômico – 25/07/2019)

Ribamar Oliveira é repórter especial e escreve às quintas-feiras – E-mail: ribamar.oliveira@valor.com.br

William Waack: Bolsonaro e os xiitas

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O governo Jair Bolsonaro, especialmente o presidente, tem uma rara capacidade de ajudar seus críticos e adversários. A mais recente demonstração é a briga de Bolsonaro com os dados do Inpe, acusado por ele de favorecer campanhas internacionais contra o País ao divulgar informações sobre desmatamento obtidas por satélites. É tão ridículo quanto brigar com o termômetro ou o barômetro. O material elaborado pelo Inpe é o resultado de considerável esforço científico nacional e internacional em entender as dimensões da questão – e se esse material indica que o desmatamento persiste em proporções preocupantes, o ponto central é a incapacidade demonstrada pelo Estado brasileiro ao longo de décadas de fazer valer suas próprias leis. Teria sido fácil dizer isso a correspondentes estrangeiros, não tivesse Bolsonaro permanecido preso a um (para usar a linguagem militar) teatro secundário de operações.

Xiitas ambientais, diz o presidente, são os responsáveis por uma enorme campanha contra o Brasil lá fora. Por xiitas ambientais Bolsonaro entende em parte ONGs internacionais – algumas, sem dúvida, com agenda claramente ideológica (combater o agronegócio capitalista) e/ou comprometidas com interesses comerciais de competidores (pela proximidade com partidos políticos que representam segmentos eleitorais com grande influência em governos de outros países). Sim, esse tipo de campanha existe, e atinge parte da imprensa tradicionalmente responsável e objetiva. Mas, a rigor, é no Brasil mesmo que persiste há muito tempo a ideia de que o negócio agropecuário e o meio ambiente são grandezas irreconciliáveis. E que o lucro e a rentabilidade (a principal razão de existir do grande negócio) seriam obtidos pela sistemática destruição da natureza e apropriação privada de recursos divinos como a terra.

Há também um ranço clerical na noção bastante popular de que um bem para todos não pode ser repartido entre alguns poucos. E que a tarefa de alimentar as pessoas cabe a quem trabalha a terra com o próprio suor, e não a entidades gananciosas que transformam centenas de milhares de quilômetros quadrados em monoculturas destinadas à exportação. Em termos abrangentes, a moderna sociedade “urbanoide” brasileira não desenvolveu em torno do produtor rural a mesma aura positiva que se registra em países como Alemanha, França ou Estados Unidos (nossos competidores). O imaginário da sociedade brasileira não se alimenta de números sobre a relevante contribuição do agronegócio para o PIB (portanto, para a economia nacional).

Não dá muita bola para coisas como inovação tecnológica – o público continua achando, em geral, que o Brasil se tornou uma grande potência agrícola pois tem água, terra, clima e expulsou de seus territórios os povos da floresta junto com as árvores. Aumento de produtividade é um conceito pouco discutido ou compreendido, aliás. Também a representação política desses segmentos econômicos e sociais ligados à produção agropecuária no Brasil (fortemente regionalizados e muito distintos entre si) é vista com desconfiança.

“Bancada ruralista” costuma ser sinônimo de um grupo de parlamentares controlados por interesses econômicos que se dedica a acobertar crimes ambientais, arrebentar direitos trabalhistas, abrir cofres públicos para subsídios e facilitar a utilização de substâncias tóxicas que deixarão resíduos em alimentos. É secundário se os fatos objetivos da realidade suportam essa percepção bastante difundida no Brasil. Em alguns pontos essenciais, não suportam – ao contrário. Mas o choque de poderosas narrativas, como são as da relação entre meio ambiente e agronegócio, se dá no palco da política, no qual o grande determinante dos “fatos” são as percepções. Seria tão mais fácil se o problema fossem apenas os xiitas. (O Estado de S. Paulo – 25/07/2019)

Hacker repassou ao The Intercept informações sobre Sérgio Moro, diz jornal

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Hacker diz à polícia que deu a site acesso a conversas de Moro

Operação Spoofing – Walter Delgatti Neto, o ‘Vermelho’, afirma à Polícia Federal que capturou do aplicativo Telegram mensagens de autoridades, incluindo Moro e procuradores

Fausto Macedo, Andreza Matais – O Estado de S. Paulo

A investigadores da Operação Spoofing, Walter Delgatti Neto, o “Vermelho”, preso anteontem por suspeita de hackear centenas de autoridades, afirmou ter dado ao jornalista Glenn Greenwald acesso a informações capturadas do aplicativo Telegram. A defesa do jornalista, fundador do site The Intercept Brasil, disse, em nota, que “não comenta assuntos relacionados à identidade de suas fontes anônimas”. A Polícia Federal tem indícios de que os quatro suspeitos presos são os mesmos que acessaram conversas trocadas pelo Telegram de altas autoridades dos Três Poderes, entre elas o ministro da Justiça, Sérgio Moro; procuradores da Lava Jato; o ministro da Economia, Paulo Guedes; e a líder do governo Bolsonaro no Congresso, Joice Hasselmann (PSL-SP).

As provas foram encontradas em perícias, buscas e apreensões e baseadas em depoimentos dos presos realizados anteontem. O The Intercept Brasil tem divulgado desde 9 de junho mensagens trocadas entre Moro e procuradores da Lava Jato, relativas ao período em que ele era juiz do caso em Curitiba. O site sustenta que recebeu o conteúdo de fonte anônima. A informação de que Walter “Vermelho” relatou ter contato com Greenwald foi confirmada ao Estado por duas altas fontes da operação. Segundo elas, o hacker disse conhecer o jornalista. A reportagem não conseguiu confirmar se presencialmente ou se eles teriam tido apenas contato virtual. Os investigadores tratam o relato com cautela, uma vez que o hacker é apontado como estelionatário.

Razão pela qual tudo o que ele informar será investigado, especialmente a partir da quebra dos sigilos bancário, fiscal e telemático do grupo, autorizada pelo juiz Vallisney Oliveira, da 10.ª Vara Federal de Brasília. Essas informações poderão revelar com quem os suspeitos conversaram nos últimos meses e a origem do dinheiro atribuído a dois deles – o casal Gustavo Henrique Elias Santos e Suellen Priscila de Oliveira movimentou R$ 627 mil em dois períodos no ano passado e neste ano. Uma das linhas de investigação apura se eles venderam os dados e com qual motivação. O casal e, ainda, Danilo Cristiano Marques, também foram presos. Todos os suspeitos são do interior de São Paulo.

Do grupo, além de Walter “Vermelho”, Gustavo Santos confirmou que teve acesso às mensagens interceptadas de autoridades e outras pessoas a partir do computador de “Vermelho”. O defensor de Gustavo Santos, Ariovaldo Moreira, disse que ele afirmou em depoimento que, ao tomar conhecimento das mensagens, alertou o colega de que ele poderia ter problemas. Segundo o advogado, seu cliente relatou também que “Vermelho” tinha interesse em vender os dados para o PT. Em nota, o partido criticou Moro e afirmou se tratar de “criminosa tentativa” de envolver a sigla no caso. ‘Fonte de confiança’. No Twitter, Moro escreveu ontem que “pessoas com antecedentes criminais” são a “fonte de confiança daqueles que divulgaram as supostas mensagens obtidas por crime”.

O ministro não citou nomes, mas, ao apontar “pessoas com antecedentes criminais”, se referiu ao grupo preso na Operação Spoofing. Walter “Vermelho”, que mora em Araraquara, interior paulista, acumula processos por estelionato, falsificação de documentos e furto (mais informações na pág. A5). O ministro também registrou que, ao autorizar a prisão dos suspeitos, o juiz informa que 5.616 ligações foram efetuadas pelo grupo com o mesmo modus operandi e suspeitas, portanto, de serem hackeamentos. “Meu terminal só recebeu três. Preocupante”, postou. Ontem, os diretores do The Intercept, Leandro Demori e Glenn Greenwald, rebateram, também no Twitter.

“Está cada vez mais claro: Moro virou político em busca de um foro privilegiado”, disse Demori. “Nunca falamos sobre a fonte. Essa acusação de que esses supostos criminosos presos agora são nossa fonte fica por sua conta. Não surpreende vindo de quem não respeita o sistema acusatório e se acha acima do bem e do mal. Em um país sério, o investigado seria você”, escreveu Demori em resposta a Moro. Greenwald afirmou na rede social que o ministro “está tentando cinicamente explorar essas prisões para lançar dúvidas sobre a autenticidade do material jornalístico”.

“Mas a evidência que refuta sua tática é muito grande para que isso funcione para qualquer pessoa”, escreveu. Em nota, o The Intercept disse que a investigação “não muda o fato de que a Constituição garante o sigilo da fonte”. (COLABORARAM RENATO ONOFRE, PATRIK CAMPOREZ, BRENO PIRES, JULIA AFFONSO E LUIZ VASSALLO)

Previdência: No Valor, Eliziane Gama diz que maioria do bloco independente vai votar a favor da reforma no Senado

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Frente de esquerda pode ter maioria a favor da Previdência no Senado

Vandson Lima e Renan Truffi – Valor Econômico

Montada para ser uma “oposição sem PT” no Senado, a frente de partidos de esquerda está rachada sobre a reforma da Previdência. Dos 13 integrantes do chamado Bloco Senado Independente, composto por PSB, PDT, Rede e Cidadania, pelo menos 7 já ponderam votar a favor da proposta.

Uma questão adicional ainda permeia a decisão dos senadores do grupo: vários deles foram convidados a trocar de legenda, o que lhes permitiria votar a favor da Previdência sem o peso da traição partidária. O Podemos, que tem atuado em uma faixa mais de centro-direita no espectro político, fez convites a Leila Barros (PSB-DF), Flávio Arns (Rede-PR), Jorge Kajuru (PSB-GO) e Marcos do Val (Cid-ES) – este último favorável à reforma desde o início das discussões. Por ser considerado cargo majoritário, o senador pode mudar de partido sem risco de perda de mandato.

“Temos tido conversas e minha percepção é que a maioria do bloco vai votar favorável. Há um sentimento de que esse será o caminho”, atesta Eliziane Gama (MA), líder do Cidadania (antigo PPS). A sigla tende a depositar seus três votos em favor da mudança no sistema de aposentadorias.

A senadora era uma das mais resistentes, mas diz que a retirada de mudanças no Benefício de Prestação Continuada (BPC) e na aposentadoria rural mudaram sua posição. “O texto melhorou muito na Câmara. Minha disposição é votar favorável”.

Eliziane, que é aliada do governador maranhense Flávio Dino (PCdoB) – um ferrenho opositor do governo de Jair Bolsonaro – diz que não foi pressionada a ir contra a proposta. “O governador me deixou à vontade sobre a Previdência”, garante. Ela ressalva que ainda vai batalhar por mudanças para evitar o recebimento de pensão por morte menor que um salário mínimo e defende a inclusão de Estados e municípios na reforma. “Tem que incluir os entes, senão resolve apenas metade do problema. Prefeitos estarão preocupados com a reeleição no ano que vem, não vão entrar nisso. É obrigação do Congresso fazer a mudança”.

Um dos idealizadores da formação do bloco, o senador Cid Gomes (PDT-CE) diz que o racha não representa a ruína do grupo ou da pauta à esquerda, mas uma consequência de uma medida com tantos desdobramentos. “Numa situação tão relevante como essa, da reforma, com tantos detalhes, o melhor caminho é que o bloco não exija uma fidelidade”, atesta. “Lá atrás, na formação do bloco, isso já ficou estabelecido: nós teríamos divergências pontuais, que seriam toleradas e trabalhadas para que tivéssemos o máximo de posição conjunta, mas respeitando os indivíduos”.

O PDT, que suspendeu das atividades partidárias oito de seus 27 deputados favoráveis à reforma na Câmara – quase um terço da bancada -, pode ter novas defecções no Senado. E até Cid, irmão do presidenciável e crítico da reforma Ciro Gomes pode, no limite, ser um destes (ver matéria abaixo).

No Rede, o líder da oposição, Randolfe Rodrigues (AP) e Fabiano Contarato (ES) devem votar contra, mas paira a dúvida sobre Flávio Arns. “[Devemos ter] dois votos contrários do Rede. Ele [Arns] estava em dúvida porque o grande problema dele é a questão dos professores. Se os professores fossem resolvidos, poderia votar a favor”, conta Randolfe.

A Câmara aceitou emenda que diminuiu a idade mínima para que professores consigam se enquadrar nas regras de transição, atendendo o que seria o pleito de Arns. O Rede não pretende punir o senador se ele de fato votar a favor da mudança na Previdência. “O Rede não vai fazer fechamento de questão. Não é da política e da prática do Rede”, completa Randolfe. O Valor tentou contato com Arns, mas segundo sua assessoria, ele estaria em local isolado com a família durante o recesso parlamentar.

A situação mais complicada do bloco é do PSB. Na Câmara, foi o partido de esquerda que deu mais votos a favor da reforma (11 dos 32), o que rendeu a abertura de um processo interno que pode se converter em expulsão do grupo. No Senado, o PSB tem três representantes – ou quase isso, já que Kajuru foi convidado a se desfiliar depois de apoiar o decreto que facilita o acesso a armas de fogo. Ele era o líder da bancada.

Veneziano Vital do Rêgo (PB), que lidera o bloco independente, é o único voto garantido do PSB no Senado contra a reforma da Previdência. Integrantes do partido afirmam, sob reserva, que a senadora Leila já teria indicado apoiar a proposta, mas o embate partidário evita que exponha sua posição publicamente. A reportagem entrou em contato com a assessoria da senadora, que recusou sequer falar sobre a proposta em linhas gerais.

Luiz Carlos Azedo: Eixo na política

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NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

O governo anunciou, ontem, mudanças nas regras para saque do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) com objetivo de aquecer a economia com estímulos ao consumo popular. Os trabalhadores poderão sacar até R$ 500 de cada conta que possuírem no FGTS, ativa ou inativa (do emprego atual ou dos anteriores), a partir de setembro. A previsão é de um impacto de R$ 42 bilhões na economia até 2020. Anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro, a medida é uma tentativa de construir um cenário econômico mais otimista para o mercado, uma vez que as projeções de crescimento do PIB para este ano estão abaixo de 1%. Mira também uma parcela da população na qual crescia a insatisfação com o governo federal.

O mercado recebeu a medida com cautela, muitos avaliam que mais da metade dos recursos a serem liberados serão utilizados pelos trabalhadores para pagar dívidas. Segundo a Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), 37% dos consumidores que estão com contas atrasadas devem menos que R$ 500, o valor liberado pelo governo para cada trabalhador este ano. O presidente da entidade, José César da Costa, diz que “os saques devem atender às necessidades de quem mais sofre neste momento, os cidadãos das classes C, D e E, que estão há muito tempo sem liquidez”.

As projeções do mercado financeiro para o crescimento deste ano são de 0,8%. Caso haja realmente melhora no ambiente econômico a partir de setembro, os mais otimistas fazem uma previsão de crescimento do PIB de 1,7 a 1,9% em 2020. “É um impacto de curto prazo, que não muda a trajetória de crescimento, apenas estimula transitoriamente a economia. A gente não vai ver empresário contratar e aumentar planta por causa de um impulso temporário. É uma medida de curto prazo para elevar temporariamente a demanda e não a capacidade produtiva”, segundo a economista Zeina Latif, da XP Investimentos.

Começa a cair a ficha de que a reforma da Previdência não é uma varinha de condão, que num passe de mágica resolverá os problemas da economia, como se dizia no começo do ano. Mesmo a venda de ativos das estatais, como o controle acionário da BR Distribuidora pela Petrobras, na terça-feira, que sinaliza um avanço efetivo na política de privatizações, não está sendo suficiente para motivar os investidores. Na verdade, a aprovação da reforma da Previdência pela Câmara em primeiro turno não foi capaz de alterar a percepção do mercado sobre o ambiente econômico; deixar a segunda votação para agosto frustrou expectativas e gerou uma grande interrogação em relação à capacidade de o presidente da República liderar as reformas.

O problema é comportamento dispersivo e radicalizante do presidente da República, cuja agenda é focada na questão dos costumes e nas disputas ideológicas com a oposição, ou seja, está descolada das medidas estruturantes da economia. A estratégia de exacerbação de tensões com a oposição e a sociedade civil é vista como um complicador para aprovação da reforma da Previdência em segunda votação na Câmara. Essa dificuldade política é agravada pelas contradições internas do próprio governo, que funciona como um arquipélago, com redutos corporativos, núcleos ideológicos e religiosos e centro de excelência insatisfeitos, com é o caso do Itamaraty e órgãos como Inpe, Fiocruz e IBGE. A percepção do mercado é de que o problema político está instalado no governo e não no Congresso, como seria o normal, mas acabará se refletindo no Parlamento. O eixo da estagnação econômica é mais político do que fiscal, pois há um ambiente favorável à aprovação das reformas.

Hackers

A Operação Spoofing, autorizada pelo juiz Vallisney de Souza Oliveira, da 10ª Vara Criminal, investiga supostas ligações de quatro hackers presos pela Polícia Federal com a invasão dos celulares do ministro da Justiça, Sérgio Moro, e outras autoridades para obter mensagens privadas trocadas pelo Telegram. Spoofing é o termo em inglês que define a “falsificação tecnológica que procura enganar uma rede ou uma pessoa fazendo-a acreditar que a fonte de uma informação é confiável quando, na realidade, não é”. As investigações realizadas pela Polícia Federal concluíram que os supostos hackers tiveram acesso ao código enviado pelos servidores do aplicativo Telegram ao celular de Moro para abrir a versão do aplicativo no navegador.

O site Intercept Brasil, que divulgou as mensagens trocadas por Moro e procuradores da Lava-Jato, classificou de precipitadas as conclusões de que teria ligação com os hackers, mas essa é a linha de investigação da Polícia Federal. Veja e Folha de S. Paulo, que também divulgaram as mensagens, reiteraram a convicção de que as mensagens são autênticas, com a ressalva de que receberam o material do jornalista Glenn Greenwald, responsável pelo site, que diz ter recebido as informações de fonte anônima. A Constituição garante à imprensa o sigilo da fonte, mas considera a invasão de celulares um crime cibernético. O caso ainda vai longe. (Correio Braziliense – 25/07/2019)

Veja as manchetes e editoriais dos principais jornais hoje (25/07/2019)

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MANCHETES

O Globo

Ataques de hackers atingiram mil alvos dos três Poderes
Retirada anual do FGTS terá 7 faixas
MP-RJ vê risco para sua atuação em recurso de Dodge sobre Coaf
TCM vai fazer devassa em obras emergenciais
Risco de câncer leva a recall de implante de seio
Facebook paga multa recorde de US$ 5 bi

O Estado de S. Paulo

Hacker diz à polícia que deu a site acesso a conversas de Moro
PF quer saber se presos foram ‘patrocionados’
FGTS terá saques de até R$ 500 e no ‘aniversário’
Com navios parados, Irã ameaça cortar comércio com Brasil
BR Distribuidora inaugura ‘controle pulverizado’
Implante de mama ligado a câncer terá recall
Boris promete Brexit ‘custe o que custar’

Folha de S. Paulo

Moro liga hackers presos a vazamento de mensagens
Saques do FGTS poderão ser feitos em setembro
Conselho da BR será reformulado com privatização
Flávio foi vítima de barbaridades, afirma advogado
Conselho da BR será reformulado com privatização
SP tem 75% dos jovens sem vacina de sarampo na infância
Chuvas e deslisamentos deixam 11 mortos no Grande Recife
Novo premiê, Boris Johnson diz não querer Brexit sem acordo com UE

Valor Econômico

Recursos do FGTS poderão dar garantia a empréstimos
Brasil defende corte unilateral da TEC neste ano
Irã ameaça cortar importação do país
Pedágio automático entra em novo ciclo competitivo
Vale do São Francisco sofre com alta de 400% da água
‘Oposição sem PT’ no Senado apoia reforma

EDITORIAIS

O Globo

Aparelhamento ao estilo de Bolsonaro

Reduz-se o peso da sociedade em conselhos, para haver um controle mais direto por parte do Planalto

Treze anos de PT em Brasília foram mais do que suficientes para demonstrar como se aparelha a máquina pública com fins políticos e ideológicos. Agora, com o outro extremo ocupando o Planalto, o presidente Jair Bolsonaro expõe seu estilo de aparelhar, com a mesma finalidade —usar o Estado para executar seus projetos —, mas por meio de métodos diferentes.

Um ponto a ser lembrado é que o presidente eleito nas urnas tem legitimidade para ocupar cargos com pessoas que o ajudarão a executar o programa sancionado pelos eleitores. Mas há limites. Para começar, os da Constituição, os mais importantes.

Também outros parâmetros precisam ser levados em conta. Por exemplo, a própria composição dos 57 milhões de votos que deram a vitória a Bolsonaro na disputa no segundo turno com o petista Fernando Haddad, grande cabo eleitoral do ex-capitão. Pois foi pela rejeição ao PT que muitos votaram em Bolsonaro, mesmo sem concordar com a parte radical e preconceituosa de suas propostas. Como a que ele segue ao intervir em conselhos, anunciar o desejo de mudar a Ancine e assim por diante. Há também —ou deveria haver — o limite da sensatez.

Aconselha-se o presidente a não considerar que todos os seus eleitores aprovam sua pauta de costumes e áreas afins.Ele já deveria saber disso, com base na vertiginosa perda de popularidade nas primeiras semanas de Planalto.

O caso da intervenção de Bolsonaro no Conselho de Políticas sobre Drogas (Conad) é exemplar. E mostra uma característica do bolsonarismo no aparelhamento. Enquanto o PT distribuía militantes e apoiadores na máquina pública, o atual governo procura intervir em organismos públicos de forma direta, escalando ministros para cargos- chave.

Deduz-se que o próprio Bolsonaro deseja interferir em certos segmentos da máquina do Estado. Esta intenção transpareceu quando, antes da posse, ao criticar uma prova do Enem, disse que ele mesmo leria as questões do teste.

O Conad, por tratar do sensível tema da droga, merece atenção especial do Planalto. Por decreto, o presidente reduziu o tamanho do conselho e excluiu dele os representantes da chamada sociedade civil.

Nomeou dois ministros, Sergio Moro, da Justiça e Segurança Pública, e Osmar Terra, da Cidadania, que dividirão a presidência do cole-giado, composta por representantes de outros ministérios e secretarias do governo. Bolsonaro no comando. E Terra é conhecido defensor de métodos ultrapassados no tratamento de usuários de drogas.

Outro caso de intervenção vertical é na Agência Nacional de Cinema (Ancine), que perderia a gestão do Fundo Setorial do Audiovisual. O governo quer estabelecer “filtros” na aprovação de projetos. O PT tinha o mesmo plano, mas recuou. O governo Bolsonaro não parece ter esta flexibilidade.

O Globo

Aumento de autos de resistência expõe opção pelo confronto no Rio

Apesar de redução do número de assassinatos, índices de violência ainda são excessivamente altos

Ao apresentar, no Palácio Guanabara, na segunda-feira, os índices de violência compilados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), o governador Wilson Witzel comemorou a redução em indicadores importantes como homicídios dolosos (22,6% no primeiro semestre), roubos de veículos (24%) e de cargas (21%).

Porém, olhando-se os dados de forma abrangente, a comemoração deve ser relativa. Evidentemente, a queda nos assassinatos é sempre relevante num estado violento como o Rio de Janeiro. Mas, segundo o índice nacional de homicídios criado pelo site G1, dentro do Monitor da Violência, essa tendência ocorre em quase todos os estados — nos quatro primeiros meses do ano, a redução foi de 23%. A queda mais acentuada aconteceu no Ceará: 53%. Portanto, não parece resultar apenas de ações localizadas.

Além disso, não pode ser menosprezado o aumento de 14,6% nos autos de resistência. Foram 881 mortes decorrentes de intervenção policial no primeiro semestre deste ano, 112 a mais do que no mesmo período do ano passado, um recorde desde 2003.

Isso certamente reflete a política de confronto de Witzel, que, antes mesmo de assumir, pregava que a polícia atirasse “na cabecinha” de qualquer bandido que segurasse um fuzil. “Não se combate o terrorismo com flores”, disse o governador na segunda-feira, depois de comparar traficantes ao grupo Hezbollah. Acontece que, num estado democrático de direito, há que se respeitar a lei. E a legislação brasileira não admite execução sumária.

Ademais, não adianta reduzir o número de homicídios enquanto as mortes em confronto disparam. É ilusão achar que se está combatendo a violência com mais violência. O Rio terá sucesso em sua política de segurança quando conseguir baixar todas as mortes violentas, e isso inclui, obviamente, os autos de resistência.

A verdade que os números recém-divulgados não encobrem é que, apesar da bem-vinda redução do número de assassinatos, o Rio ainda é um estado extremamente violento, onde são registrados quase 12 homicídios por dia.

Estando em casa, nas ruas ou no transporte público, a população fluminense não se sente segura. O número de roubos em ônibus, por exemplo, aumentou 14,2% no primeiro semestre. Foram 8.761 ocorrências, um recorde. O de celulares subiu 9%.

Na semana passada, um centro de distribuição do Carrefour em Duque de Caxias foi assaltado por uma quadrilha de cerca de 50 homens armados de fuzis. Diante do terceiro roubo em menos de um ano —o prejuízo desta vez foi cerca de R$ 2 milhões —, a rede de supermercados ameaça deixar o Rio.

Esta, infelizmente, é a vida real.

O Estado de S. Paulo

Roteiro para a reconstrução

O Brasil poderá desencalhar e crescer 2,4% no próximo ano, se tudo correr bem, uma boa reforma da Previdência estiver aprovada e houver confiança no futuro do País. Ainda emperrada, a economia deverá avançar apenas 0,8% em 2019, muito abaixo de seu potencial, estimado em 2,2% ao ano. O caminho para dias melhores está numa cartilha de políticas para arrumar as contas oficiais, controlar a dívida pública, racionalizar o gasto oficial e ganhar eficiência produtiva e poder de competição. O diagnóstico e o resumo da cartilha estão no recém- divulgado relatório de avaliação da economia brasileira elaborado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Para produzir relatórios desse tipo, uma equipe da instituição coleta informações oficiais, conversa com representantes oficiais e consulta outras fontes consideradas de alta qualidade.

O roteiro proposto pelo FMI – e já desenhado em relatórios anteriores – inclui tarefas para o atual governo e para seu sucessor. Se tudo correr direito, em 2023 o Produto Interno Bruto (PIB) estará crescendo normalmente de acordo com o potencial, isto é, em torno de 2,2% ao ano, mas chegar lá será apenas a primeira etapa. O objetivo seguinte será elevar a capacidade de expansão para 3% ao ano. Se chegar a esse ritmo, o crescimento brasileiro será metade daquele mantido há algum tempo pela China. Este mesmo objetivo, o potencial de 3%, foi definido no governo do presidente Michel Temer pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. Acossado politicamente, esse governo pouco pôde fazer além de tirar o País da recessão, impor algum controle às contas públicas e promover um par de inovações importantes – a reforma trabalhista e a criação de um teto para o gasto federal.

Ao mesmo tempo, a inflação foi contida e o Banco Central (BC), depois de um aperto inevitável, baixou os juros básicos para 6,50% ao ano, taxa mantida a partir de março de 2018. No essencial, o diagnóstico e o roteiro apresentados pelo FMI reproduzem os desafios e ambições conhecidos e basicamente aceitos no governo anterior, sem os alinhamentos e penduricalhos ideológicos e religiosos da gestão atual. Esses penduricalhos tampouco se encontram no trabalho dos técnicos e nas sugestões endossadas pela diretoria executiva do FMI. O potencial de crescimento do Brasil é há alguns anos um dos mais baixos encontrados entre os grandes emergentes, assinala o relatório. A elevação desse potencial sintetiza, de certa forma, as metas propostas para os próximos anos pelos economistas do Fundo Monetário Internacional e de outras instituições sérias. Mas a meta, apesar de aparentemente modesta, impõe desafios enormes.

Para elevar o potencial de crescimento a 3%, será preciso conduzir as taxas de produtividade e de investimento a níveis bem superiores aos dos últimos 20 anos. Nesse período a produtividade cresceu em média apenas 0,5% ao ano. Será preciso no mínimo dobrar essa taxa e levar o investimento de volta a 18% do PIB e depois para cima disso. O investimento fixo (máquinas, equipamentos e obras) deve ficar abaixo de 16% do PIB neste ano e passar ligeiramente de 18% em 2023, segundo as projeções. A maior parte do capital será investida pelo setor privado, mas o governo terá enorme importância na criação de condições propícias, contendo a dívida pública, facilitando a redução de juros, criando um ambiente pró-negócios, promovendo a eficiência da intermediação financeira, abrindo a economia, estimulando a concorrência e favorecendo a formação de capital humano.

Em mais de uma passagem o relatório menciona os juros “indevidamente altos” como entraves ao consumo familiar e ao investimento. Medidas para tornar mais eficiente o mercado financeiro são indicadas. A agenda é enorme e complexa. Com algumas variações, será quase certamente esse o roteiro de qualquer política vitoriosa. Haverá trabalho para dois mandatos, no mínimo, e será essencial manter os padrões conquistados. Os ajustes, insistem os autores do relatório, devem ser executados sem abandono da proteção social, incluído o Bolsa Família. Não se prega capitalismo selvagem nem darwinismo social.

O Estado de S. Paulo

Novo premiê, mesmas incertezas

O ex-prefeito de Londres, ex-ministro do Exterior e novo líder conservador Boris Johnson foi incumbido pela rainha Elizabeth II de formar o novo governo do Reino Unido. Sua principal missão como primeiro- ministro, se não a única nos próximos três meses, será resolver a mais grave crise enfrentada por seu país em tempos de paz na história recente, o impasse em torno do Brexit. A antecessora de Johnson no número 10 de Downing Street, Theresa May, caiu justamente por não ter conseguido aprovar no Parlamento um plano de separação negociada entre o Reino Unido e a União Europeia (UE). Os termos negociados por May com a UE em Bruxelas foram rejeitados nada menos do que três vezes pela Câmara dos Comuns.

A pressão do tempo agora recai sobre os ombros de Johnson: com ou sem acordo, o Reino Unido estará fora da UE no dia 31 de outubro. De acordo com as autoridades em Bruxelas, a UE não admite negociar este prazo mais uma vez. Boris Johnson foi uma das vozes mais efusivas a favor do Brexit no curso da acirrada campanha plebiscitária de 2016, quando os britânicos decidiram sair da UE por 52% a 48% dos votos. Em seu primeiro discurso após a audiência com a rainha no Palácio de Buckingham, Boris Johnson disse que seu “mantra” na disputa pela liderança do Partido Conservador foi “realizar o Brexit, unir o país e derrotar (o líder trabalhista) Jeremy Corbyn”, e “é isso que fará”. A missão de levar a cabo a vontade da maioria dos britânicos de sair da UE agora está nas mãos de um apaixonado defensor da ideia.

Theresa May, a despeito de ter cumprido seu mandato com profissionalismo e espírito público, sempre foi identificada como remainer, ou seja, uma defensora da permanência do Reino Unido na UE. Entretanto, se Johnson é um legítimo leaver, há dúvidas se o premiê terá habilidade política para conduzir um processo tão complexo como o Brexit de modo a evitar as pesadas consequências que uma saída “dura”, ou seja, sem acordo de transição, teria sobre a economia de seu país e sobre a vida de milhões de britânicos.

Boris Johnson é tido como um político de grande preparo intelectual e ampla visão. Mas seus discursos contraditórios e o pouco apreço que tem pelos detalhes de uma negociação mantêm no ar uma boa dose de incerteza quanto ao futuro do Brexit. Antes de ter sido escolhido para liderar os conservadores e, consequentemente, ser o primeiro-ministro, Johnson dizia que, eleito, levaria o Reino Unido para fora da UE “com ou sem acordo” no dia 31 de outubro. Agora, embora mantenha firme a posição sobre o prazo, já admite que a saída não negociada é “uma possibilidade remota”.

O ponto nevrálgico para um Brexit negociado é a questão da fronteira entre a Irlanda do Norte, que faz parte do Reino Unido, e a Irlanda republicana ao sul, país-membro da UE. Não se admite o restabelecimento de uma fronteira física ou aduaneira entre os dois países desde o Acordo da Sexta-feira Santa, assinado em 1998 pelos governos britânico e irlandês. O acordo pôs fim ao sangrento conflito entre nacionalistas da Irlanda e unionistas da Irlanda do Norte. É justamente a aliança com o Partido Unionista Democrático (DUP, na sigla em inglês) que garante aos conservadores a maioria no Parlamento britânico e a prerrogativa de indicar o primeiro-ministro.

Para tentar solucionar esse impasse, a ex-primeira-ministra Theresa May concebeu o que chamou de backstop, uma união aduaneira temporária entre as Irlandas a fim de evitar o controle de mercadorias na fronteira até que uma solução definitiva fosse encontrada. Não deu certo com ela e não há o que indique que dará certo no governo de Boris Johnson. O impasse está mantido. O governo do Reino Unido tem um novo chefe, mas as incertezas permanecem. Boris Johnson pode tanto entregar o que prometeu como pode ter um dos mais curtos mandatos como primeiro-ministro. O Parlamento britânico não irá sustentar um governo que leve o Reino Unido a um Brexit não negociado.

O Estado de S. Paulo

Diligência seletiva

Após um mês e meio da primeira divulgação das mensagens que teriam sido trocadas entre o então juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba, Sergio Moro, e integrantes do Ministério Público Federal, a Polícia Federal deflagrou a Operação Spoofing, que investiga possíveis crimes relacionados à invasão dos aparelhos celulares das autoridades envolvidas na Operação Lava Jato. Quatro pessoas tiveram a prisão temporária decretada. Ainda que não se saiba muito sobre o efetivo estágio de investigação – se de fato foram encontrados indícios robustos sobre os tais crimes –, é digna de louvor a diligência das autoridades policiais no caso. Chama a atenção, no entanto, a disparidade de tratamento entre este caso de vazamento de mensagens privadas e tantos outros casos de vazamento de informações sigilosas que vêm ocorrendo desde o início da Operação Lava Jato.

No caso que envolveu o agora ministro da Justiça, Sergio Moro, e integrantes do Ministério Público Federal, o vazamento foi prontamente investigado, com resultados palpáveis em menos de dois meses. Já em relação aos outros casos de vazamento de informações – muitos e espetaculosos –, não se soube de nenhuma prisão cautelar, de nenhuma denúncia oferecida e, menos ainda, de nenhuma punição dos responsáveis por tantas quebras de sigilo. Na maioria destes casos, não houve sequer abertura de inquérito. A impressão que têm – equivocada impressão, deve-se reconhecer – é a de que invadir celular é crime, mas vazar informação judicial sigilosa, não; por exemplo, partes de um inquérito ou de uma delação ainda não homologada pela Justiça.

Os dois casos constituem crimes igualmente. Na decisão que decretou a prisão temporária dos quatro suspeitos de invadir os celulares de Moro e de integrantes da Lava Jato, o juiz Vallisney Oliveira menciona que um dos crimes investigados pela Operação Spoofing é o previsto no art. 10 da Lei 9.296/96. Diz o artigo que “constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”. É pedagógico que a Lei 9.296/96, ao regulamentar a garantia constitucional da inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telefônicas e de dados (art. 5.º, XII da Constituição), coloque sob o mesmo guarda-chuva a interceptação telefônica não autorizada judicialmente e a quebra do segredo de Justiça.

A pena prevista para as duas condutas é a mesma: reclusão de dois a quatro anos e multa. Não há motivo para tratamento tão diferente entre o caso da invasão de contas do aplicativo Telegram e os outros casos de vazamento de informações protegidas por sigilo judicial, tão frequentes e igualmente daninhos para a reputação das pessoas. É criminosa a violação do sigilo das comunicações – o grampo – e é igualmente criminosa a quebra do segredo de Justiça – o vazamento. É ruim para o País a impressão de que autoridades investigativas atuam zelosamente apenas nos casos em que interessa ao Ministério Público o avanço das investigações.

Uma atuação que desse causa a esse tipo de interpretação contrariaria frontalmente o Estado Democrático de Direito. Por exemplo, o sigilo da correspondência é uma garantia constitucional de todos os cidadãos, e não apenas dos membros do Judiciário ou do Ministério Público. Não há por que investigar apenas algumas suspeitas e deixar outras sem explicações. É grave a denúncia de que as contas do Telegram de pessoas envolvidas na Operação Lava Jato foram invadidas.

As autoridades policiais e o Poder Judiciário agiram corretamente, movimentando-se para proteger a privacidade dos cidadãos. Mas essa não pode ser uma atuação seletiva nem ser esse um sigilo seletivo. Se com razão promotores da Lava Jato queixam-se de que suas conversas pessoais foram reveladas, também com razão queixam-se muitos cidadãos de que seus sigilos bancários e fiscais foram quebrados sem a devida autorização judicial. Na República, é essencial que todos sejam tratados igualmente perante a lei.

Folha de S. Paulo

Cuidado com o SUS

Proposta para mudar financiamento da atenção primária à saúde parece bem fundamentada, mas deveria ser testada primeiro em escala menor

É meritória a disposição do Ministério da Saúde de alterar as regras de financiamento da atenção primária do Sistema Único de Saúde (SUS), incorporando indicadores de efetividade e desempenho.

Uma gestão eficiente, afinal, não pode pautar-se somente por critérios demográficos —cumpre olhar também para a produtividade.

Pelas normas hoje emvigor, o repasse de recursos aos municípios para a atenção primária —vale dizer, a assistência prestada pelo programa de saúde da família (PSF) e unidades básicas de saúde— é definido com base na população local, segundo as estimativas do IBGE, e no número de equipes do PSF em atividade em cada cidade.

Em vez disso, o ministério pretende considerar a população efetivamente cadastrada nos programas de atenção primária (e não mais o total de residentes), além de introduzir medidas de desempenho, como a qualidade do pré-natal prestado, controle de doenças sexualmente transmissíveis, de diabetes, hipertensão arterial e outras.

A fim de evitar que as áreas onde as condições de saúde são mais precárias fiquem à míngua, o governo promete levar em conta também indicadores de vulnerabilidade socioeconômica e a distância entre os municípios considerados e as grandes conurbações.

À diferença do padrão de improviso extremo que marca grande parte das iniciativas da administração de Jair Bolsonaro (PSL), a proposta do ministério parece ter sido bem pensada, debatida com gestores e desenvolvida com ao menos algum detalhamento.

Isso não impede que especialistas se dividam em relação a seus prováveis efeitos práticos.

Há quem reconheça virtudes no projeto, mas também quem veja riscos ao princípio de universalidade do SUS, por não se contemplarem usuários não cadastrados no rateio de verbas —por outro lado, estimula-se o aperfeiçoamento de cadastros das prefeituras.

A controvérsia tem razão de ser, quando se considera que o Sistema Único de Saúde é uma estrutura gigantesca e profundamente heterogênea. Não raro observa-se um fosso entre o efeito esperado de uma medida e aquilo que de fato ocorre no mundo real.

Para uma ideia do desafio basta lembrar que, das 43 mil equipes de saúde da família que atuam no país, 17 mil não estão informatizadas. Como farão para gerar os cadastros de pacientes e produzir dados sobre a qualidade do atendimento?

A proposta do ministério mostra objetivos corretos. Diante das complexidades do SUS, entretanto, a prudência recomenda que, antes de promover uma reforma que mexerá com todo o sistema, se teste o modelo em algumas regiões que representem bem a diversidade do país. O seguro morreu de velho —e não de erro médico.

Folha de S. Paulo

Líderes incômodos

Após deixar o poder que ocupou de 1997 a 2007, o ex-premiê britânico Tony Blair confidenciou que a rainha Elizabeth 2ª o havia admoestado devido aos meros 43 anos que tinha quando assumiu o cargo.

A soberana lembrara que Blair nem havia nascido em 1952, quando ela subiu ao trono e teve sua primeira reunião como primeiro-ministro da época, ninguém menos do que o mítico Winston Churchill.

Elizabeth conviveu com outras lendas, como Margaret Thatcher, entre os 13 nomes que chegaram à liderança do país em seu longevo reinado. Agora, teve de se resignar a uma audiência de formação de governo com Boris Johnson.

O folclórico ex-prefeito de Londres foi chamado por Donald Trump de sua versão britânica. Talvez seja exagero: até a revista The Economist, bastião liberal que antevê um governo desastroso, sustenta que ele não comunga da visão de mundo do americano.

O escaninho da inadequação ao cargo, que serve a Trump ou a Jair Bolsonaro (PSL), parece ser mais preciso. Suas tiradas infelizes, ineficiência administrativa e populismo são, contudo, o retrato de uma era.

Nos últimos anos, uma cepa de políticos emergiu para, com variações nacionais, dar vazão à insatisfação do cidadão médio com processos globalizantes. Há exemplos mais e menos ruidosos, mas um traço comum é a incompatibilidade com a dita liturgia do cargo.

Por óbvio, julga-se o governante pelo desempenho. Trump permanece um fardo para o establishment, porém seu sucesso até aqui na economia e a anemia na concorrência o tornam virtual favorito à reeleição no ano que vem.

Johnson tem um desafio maior à frente. Como rosto público da campanha que levou 52% dos britânicos a optarem pela saída da União Europeia em 2016, ele agora terá de conduzir o traumático processo.

Sua primeira manifestação no cargo foi escorregadia. O premiê defende um acordo para sair do bloco europeu na data-limite de 31 de outubro, mas sugeriu que isso pode se dar sem acomodação com Bruxelas —embora tratando tal possibilidade como remota.

Se optar pelo caminho mais impactante, provavelmente terá de fazer a aposta de convocar eleições, visando assim evitar o mesmo destino da antecessora, Theresa May, que viu seu plano de brexit derrotado três vezes no Parlamento.

Nessa hipótese, Johnson talvez se veja obrigado a unir forças com os radicais xenófobos liderados por Nigel Farage, operação que transmutará a face algo benigna da inadequação do premiê em um pesadelo político mais sombrio.