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Brasil é o País democrático que mais concentra renda, mostra relatório

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Entre as democracias, Brasil lidera concentração de renda

O 1% mais rico concentra 28,3% do total de rendimentos, índice só superado pelo autocrático Qatar; na crise, miséria voltou a subir, mas houve forte queda nos anos 2000

Fernando Canzian, Fernanda Mena e Lalo de Almeida – Folha de S. Paulo

O morro do Vidigal no Rio de Janeiro tem esse nome em memória do major Miguel Nunes Vidigal (1745-1843), chefe da polícia colonial no início do século 19. Tido como cruel em seu tempo, era considerado o terror dos escravos fugidos e temido pela população pobre do Rio. Em 1820, Vidigal ganhou as terras no morro de monges beneditinos, que antes as haviam recebido de presente do visconde de Asseca, nobre de privilégios e protegido pela coroa portuguesa.

É do alto de sua pequena casa no Vidigal que Wallace Guimarães, 28, tem a visão panorâmica da desigualdade brasileira.

Ela começa por telhas velhas sobre casas precárias, “gatos” de energia e caixas d”água azuis, passa por cima de prédios, hotéis de luxo e as praias brancas do Leblon e de Ipanema até alcançar o Pão de Açúcar, no meio do caminho em direção ao centro do Rio.

Foi olhando para esse cenário que Guimarães tentou melhorar sua posição relativa há dois anos, investindo no Vidigal o maior dinheiro que já conseguiu juntar na vida: R$ 12 mil para abrir a primeira do que esperava ser uma rede de barbearias.

Ganhando até R$ 2.000 por semana como uma espécie de “faz tudo” na produção de filmes e comerciais de TV, ele abriu o negócio em 2017. O plano era aumentar a renda e se tomar independente.

“A gente via o pessoal saindo da classe D e indo para a C e pensava: “Uma hora sou eu”. E já estava melhor. Comia e bebia melhor, tinha planos de comprar um carro”, diz.

“De repente, bum! Veio essa crise. O trabalho parou, a barbearia não se pagou e terminei pior do que antes, quase sem trabalho e com dívidas.” Guimarães até que foi longe, pois a maioria dos brasileiros, sobretudo os mais pobres, começou a naufragar antes na última recessão, que se estendeu do segundo trimestre de 2014 ao fim de 2016. Mas, ao final, ele também sucumbiu e acabou se juntando ao grupo que mais sofreu: os jovens, que perderam cerca de 15% da renda na crise.

Na média geral, a queda de rendimentos desde o fim de 2014 é de 2,6%; e o país segue no negativo após a lenta recuperação do último biênio.

“Foi um tombo que levou a economia a perder ainda mais a sua força, pois são os mais pobres que consomem grande parte de sua renda”, diz Marcelo Neri, diretor do FGV Social, que analisa esses dados.

Mas a crise acentuada nos estratos mais pobres, e em regiões como Norte e Nordeste, não levou só ã queda dos rendimentos e à redução do crescimento econômico.

Ela provocou também um aumento da desigualdade de renda por mais de quatro anos consecutivos (17 trimestres). Foi algo que não ocorreu nem no período anterior a 1989, ano de desigualdade recorde.

Dados do FGV Social dão a dimensão da piora na concentração: do fim de 2014 a junho deste ano, a renda per capita do trabalho dos 10% mais ricos subiu 2,5% acima da inflação; e a do 1% mais rico, 10,1%.

Já o rendimento dos 50% mais pobres despencou 17,1%; e dos 40% “do meio” (a classe média entre os mais ricos e os mais pobres), caiu 4,2%.

Isso levou o índice de Gini a 0,629, muito próximo ao recorde da série desde 2012 (medido de 0 ai, quanto mais perto de 1, pior a desigualdade).

Segundo o Relatório da Desigualdade Global, da Escola de Economia de Paris, o Brasil é hoje o país democrático que mais concentra renda no 1% do topo da pirâmide.

Só o Qatar, emirado árabe absolutista de 2,6 milhões de habitantes e governado pela mesma dinastia desde meados do século 19, supera, por pouco, o Brasil.

A partir de dados que combinam pesquisas domiciliares, contas nacionais e declarações de imposto de renda, o relatório mostra que esse 1% superrico (cerca de 1,4 milhão de adultos) captura 28,3% dos rendimentos brutos totais e recebe individualmente, em média, R$ 140 mil por mês pelo conjunto de todas as suas rendas.

Como comparação, os 50% mais pobres (71,2 milhões com renda média de R$ 1.200) ficam com 13,9% do conjunto de todos os rendimentos, menos da metade do que é recebido pelo 1% no topo.

Mesmo considerando os 10% mais ricos, o Brasil empata com a índia e só perde para a África do Sul no ranking dos mais desiguais. Os cerca de 14,2 milhões de adultos nesse decil têm renda média de R$ 28,5 mil e capturam 55,5% dos rendimentos totais.

Depois do Brasil e do Qatar, onde o 1% detém 29% da renda, outros países com forte acúmulo no topo são o Chile (modelo liberal para muitos e proporcionalmente mais rico que o Brasil), o Líbano, os Emirados Árabes e o Iraque.

Segundo Marc Morgan, que analisa dados do Brasil no relatório, enquanto os mais ricos no país expandiram a renda no período favorável de 2001 a 2015 e os 50% mais pobres também tiveram ganhos, a classe média (os 40% “do meio”) perdeu participação nos rendimentos totais, de 33,1% para 30,6%.

Assim, o Brasil seguiu tendência parecida à dos demais países do Ocidente, onde as classes médias perderam terreno, entre outros motivos, porque a Ásia ascendeu empregando mão de obra barata na produção industrial.

De uma forma geral, os muito ricos no Brasil continuaram acumulando ganhos elevados, sobretudo de capital. E as faixas mais pobres progrediram com o aumento da atividade em setores não industriais, menos especializados e que empregam muita gente, como construção e comércio.

No miolo, a classe média foi comprimida, entre outros fatores, pelo encolhimento da indústria de transformação, cuja participação no PIB caiu à metade nas duas últimas décadas, para cerca de 12%.

Desde 2001, segundo o relatório, enquanto a metade mais pobre do Brasil obteve um aumento de 71,5% em sua renda, e os 10% mais ricos, de 60%, a classe média (os 40% “do meio”) viu seus rendimentos crescerem menos: 44%.

Morgan avalia que o mesmo fenómeno de “compressão” da classe média que favoreceu Donald Trump nos EUA, a direita na Europa e que levou o Reino Unido ao brexit tenha ajudado também na eleição de Jair Bolsonaro no Brasil em 2018 —com a ajuda extra do discurso anticorrupção e anti-PT que empurrou o eleitorado para a direita.

“O Brasil criou uma linha bastante dividida entre aqueles que ganharam mais e votaram no PT e essa classe média espremida que perdeu terreno nos níveis mais altos da distribuição de renda”, diz Morgan.

O paulistano Hélio Honório, 60, é um exemplo radical dessa precarização da classe média que, assim como em outros países, perdeu espaço para os asiáticos.

Pobre na juventude, Honório conseguiu montar uma pequena fábrica de bolsas em São Paulo que chegou a empregar 22 funcionários até o início dos anos 2000.

“Mas aí começaram a entrar os importados, e a coisa desmoronou. O preço deles nas lojas era o meu de custo”, lembra. “Tudo da China, que quebrou quase todo mundo.”
Para se adaptar, ele passou a vender produtos importados da Ásia na rua 25 de Março, chegando a faturar cerca de R$ 2.000 em dias muito bons.

“Mudei para um apartamento de três dormitórios e entrei no financiamento de dois carros. Vivia bem, viajava, comia fora. Mas aí veio a crise, e tudo foi se perdendo.”

Em 2011, j á havia se mudado com a mulher para uma quitinete em um bairro popular no centro. Alvo de agiotas, sua companheira se endividou e ele acabou perdendo tudo: o pouco capital que tinha e o negócio no maior centro de comércio popular da cidade.

Hoje, ele trabalha como camelô em uma esquina na Vila Olímpia onde consegue tirar menos de R$ 2.000 limpos por mês. Separado da mulher, aluga um quarto na favela da Funchal, um conjunto precário de casas de madeirite espremido entre prédios luxuosos da região.

Como camelô, Honório integra o grupo de atividade que mais cresceu durante a crise: os trabalhadores por conta própria já são 24,imilhões dos 93,3 milhões de ocupados.

São eles que contribuem para que não se j a ainda mais elevada a taxa de desemprego de 12% em um país com 12,8 milhões de pessoas sem trabalho —3.3 milhões delas buscando alguma ocupação há pelo menos dois anos.

Apesar de sua decadência, Honório até conseguiu manter um rendimento exclusivo do trabalho próximo da média dos brasileiros, algo que não foi possível aos milhões que afundaram na crise.

Segundo dados do FGV Social, o total de pessoas que cruzaram a linha da extrema pobreza desde 2014, passando a viver com menos de R$ 232 por mês, cresceu 33%.

Somados, foram 6,3 milhões de brasileiros, o que elevou a 23,3 milhões o total de miseráveis —o equivalente a 11,2% da população. Mesmo assim, há muito menos pessoas na pobreza extrema hoje do que no início dos anos 2000, quando elas eram 28% do total.

Hélio Honório em São Paulo e Wallace Guimarães no Rio são exemplos de pessoas que Fernando Burgos, professor da escola de administração da FGV-SP, considera terem passado pelo que ele chama de “porta giratória” da desigualdade brasileira.

“É como se eles tivessem entrado por essa porta, visto o saguão do hotel e sentido o ar condicionado. Só que aporta continuou girando e eles acabaram saindo novamente.”

Na opinião de Burgos, apesar do aumento da renda dos mais pobres nos anos 2000 e da redução da pobreza ao longo das últimas décadas, as políticas sociais e as condições macroeconômicas do país não atacaram o que ele chama de “outras dimensões da pobreza”, de caráter estrutural.

Nesse sentido, o Brasil continuaria sendo um país com barreiras históricas e difíceis de romper que limitam a melhora das condições econômicas dos mais pobres —e com baixíssima mobilidade social.

“Se eu dissesse: “Vamos desenhar um país que vai ter uma desigualdade muito grande, extrema, e que você não vai conseguir mudar isso facilmente”, não poderia ter pensado em nada melhor do que o Brasil”, diz Naercio Menezes, coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper.

Além de alta, a desigualdade no Brasil seria persistente e presa a um “círculo vicioso” que começa no nascimento.

“Quem nasce pobre parte de um ambiente desfavorável, sem saneamento, com várias crianças na miséria e com pais que não têm a educação necessária para saber o que é importante”, diz Menezes.

“Depois, acaba em uma escola pública ineficiente, com problemas sérios de gestão e violência. E quando atinge o ensino médio, vai direto para o mercado de trabalho, o que não significa sempre um emprego formal”, resume.

Foi esse o caso de Wilton da Cruz, 24, entrevistado pela Folha durante ato em apoio ao presidente Jair Bolsonaro na avenida Paulista.

Depois de terminar o ensino médio em 2012, ele não teve a chance até agora, “por questões financeiras”, de ingressar em uma faculdade.

Mas, a partir do s 16 anos, já trabalhou como vendedor, entregador de panfletos em troca de R$ 20 ao dia e, mais recentemente, na área de telemarketing. Agora, está desempregado há um ano, mesmo tendo terminado um curso técnico na área de plásticos.

Ao não cursar uma faculdade, Cruz terá sua renda limitada no futuro, pois uma graduação universitária costuma gerar o dobro da renda na comparação com quem tem só um ensino médio técnico.

A boa notícia é que, entre o início dos anos 2000 e 2018, o total de brasileiros com ensino superior passou de 7% para 17%, muitos deles negros que ingressaram na faculdade por meio de cotas.

Numa eventual recuperação econômica, eles tendem a se sair melhor e a ganhar mais.

Mas, diferentemente de outros países do Ocidente, onde a desigualdade cresce por mudanças em estruturas produtivas, o Brasil também teria, segundo especialistas, muitos privilégios a minorias pagos com dinheiro público e um alto índice de corrupção. Além de problemas “de partida”.

Isso incluiria a herança escravocrata, que ainda mantêm os negros nas camadas socioeconômicas inferiores; mandonismos regionais; o patrimonialismo que se apodera de recursos estatais ou emprega protegidos no setor público; políticas sociais destinadas a quem menos precisa; e uma estrutura tributária regressiva que cobra proporcionalmente mais impostos de quem ganha menos.

Ainda na economia, há pouquíssima abertura comercial (o país participa com 1,2% do comércio global) e competição limitada entre empresas, muitas envolvidas em corrupção —só os crimes denunciados na Lava lato somam R$ 6,4 bilhões em propinas.

Para a historiadora Lilia Schwarcz, autora de “Brasil: uma Biografia” (com Heloisa Starling), além de ter sido destino de quase a metade dos 12 milhões de negros que saíram da África escravizados entre os séculos 16 e 19 e de ter sido o último país a abolir a escravidão nas Américas, em 1888, o Brasil não teve políticas de integração para os libertos.

O fato contribuiria até hoje para a manutenção da desigualdade. Representando mais da metade da população no país, apenas 40,3% dos pretos e pardos maiores de 25 anos, por exemplo, chegaram ao fim do ensino médio.

“Fomos também uma colónia de exploração, com uma lógica econômica dada pela realidade e demanda externas. Assim, constituímos um país de grandes propriedades e mandonismos presentes até hoje”, diz Schwarcz.

Exemplo do peso desse passado, Luiza de Marillac Ferreira, 52, é neta de uma negra — filha de escravos— e de um português e mora no mesmo local em que o casal de avós se estabeleceu há muitas décadas na comunidade do Poço da Draga, no Ceará.

Antiga vila de pescadores e estivadores, a área é uma ilha de pobreza sem equipamentos públicos e saneamento, mas cercada de empresas e bares perto da famosa praia de Iracema, em Fortaleza.

Ali, Marillac é mais uma das que passaram pela “porta giratória” da desigualdade.

Em 2002, ela fez um curso de enfermagem e conseguiu dois empregos, junto ao marido pedreiro, chegaram a ganhar R$ 3.000 mensais.

Na época, comprou vários eletrodomésticos e investiu na educação dos quatro filhos, três dos quais foram beneficiados por programas federais.

Em 2008, Marillac perdeu um dos trabalhos. Em 2014, o outro. Em 2015, foi a vez do marido ficar sem emprego.

“Passei a vender lanche na construção civil, mas não dava. Precisei de ajuda da minha mãe, que recebia um salário de aposentadoria”, diz.

Hoje, duas de suas filhas conseguiram sair do país, e a família vive com R$ 1.072 que Marillac recebe como articuladora comunitária da Prefeitura de Fortaleza.

Muito em função da herança histórica, ainda são os estados pobres do Nordeste os que concentram as maiores desigualdades, o maior percentual de negros, alguns dos maiores latifúndios e os piores empregos do país.

Já o patrimonialismo concentrador de renda tem várias vertentes: salários e pensões elevadas de servidores; R$ 376 bilhões em renúncias fiscais e subsídios a setores empresariais só neste ano; fundos de pensão estatais que financiam projetos inadequados; e até recursos para universidades públicas em detrimento do ensino básico.

Na média do Brasil, os salários no setor público são bem maiores do que os pagos em funções correspondentes na iniciativa privada. Em Brasília, no Distrito Federal, onde se concentra o maior número de servidores, ganha-se, na média geral, 92% a mais do que no resto do país.

Para o economista Cláudio Hamilton dos Santos, a diferença revela a “desconexão” de Brasília com o Brasil.

Segundo ele, a proximidade dos servidores federais com a administração pública em Brasília aumenta o poder de barganha desse grupo na obtenção de aumentos, privilégios e aposentadorias quase sempre superiores ao teto de R$ 5.839,45 no setor privado.

Eles são pagos sobretudo por meio da transferência anual de cerca de R$ 14 bilhões da União para o Governo do Distrito Federal.

Equivalente a quase a metade da verba anual do Bolsa Família e a mais do que a receita líquida individual de 14 estados, 90% desse dinheiro é gasto só com pessoal.

Assim, a comunidade Sol Nascente, em Ceilândia, amenos de 30 km da Praça dos Três Poderes, poderia ser considerada um ícone da desigualdade brasileira —com seus 120 mil habitantes muito próximos da zona de maior remuneração média do país, o Governo do Distrito Federal.

Ali quase não existem equipamentos públicos como escolas e delegacias, grande parte das casas não tem esgoto ou água encanada e muitas das ruas são de terra, com sujeira espalhada devido à precariedade na coleta de lixo.

Sem outra opção, foi no Sol Nascente que Marcílio Sales, 49, conseguiu se estabelecer quando chegou a Brasília, em 1997, fugindo da seca e da atividade rural no Piauí.

Trabalhando com artesanato no início, ele acabou empregado em uma empresa de manutenção e limpeza terceirizada pela Universidade de Brasília, na qual conseguiu aprender a ler e a escrever em um programa de alfabetização.

Com o salário de R$ 900 e outros bicos, comprou um terreno na comunidade em que ergueu sua casa. Primeiro de madeirite; depois, de tijolos.

Mas em 2017 Sales foi demitido, após 20 anos de trabalho na universidade. “De lá para cá, não apareceu mais nada.”

Sem o salário, parte das atividades de um projeto que ele havia criado para dar aulas de reforço a crianças e para capacitar mães em costura foi suspenso, o que ajudou a piorar a situação da comunidade.

“Sem minha renda, tudo caiu: eu, o projeto, tudo. Estamos passando um sufoco danado”, diz Sales, que não recebe atualmente nenhum benefício social do Estado.

Para o economista-chefe do Instituto Ayrton Senna, Ricardo Paes de Barros, não é pouco o que o Brasil gasta em suas várias políticas sociais. O problema, argumenta, é como o dinheiro é utilizado.

“O Brasil construiu uma rede de proteção social gigante. Mas gastamos dinheiro demais com transferências em diversos programas e de menos com igualdade de oportunidades para que todos partam do mesmo ponto”, diz.

“A coisa mais inteligente a fazer seria juntar tudo isso em uma única rede de proteção social em vez de ter um amontoado de programas.”

Segundo dados do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), o Brasil gasta hoje na área social o equivalente a cerca de 25% do PIB. Na América Latina, o país só perde para a Argentina nesse quesito.
O gasto brasileiro, porém, é de pior qualidade, sobretudo devido a despesas previdenciárias que contribuem para concentrar a renda. Segundo o órgão, o Brasil gasta sete vez mais com seus idosos do que com os jovens — ante quatro vezes na média da região.

O BID considera que nada menos do que 75% das transferências públicas no Brasil podem ser classificadas como “pró-ricos”, passando longe do objetivo ideal de equalizar as chances “de partida” das crianças e dos mais jovens.

Para o organismo internacional, o Bolsa Família é hoje disparado o melhor e mais efetivo programa de combate à pobreza e de distribuição de renda do país.

Dos 70 milhões de domicílios brasileiros, 9,5 milhões são atendidos pelo programa, que conta com orçamento anual de R$ 31 bilhões, o equivalente a menos de um décimo dos incentivos fiscais concedidos a vários setores empresariais.

No total, são 14 milhões de mulheres (metade no Nordeste) que recebem, em média, R$ 186 mensais com a contrapartida de manter os filhos na escola e levá-los a postos de saúde —dois dos fatores considerados fundamentais para combater a desigualdade “na partida” da vida.

Para o economista e ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga, o Bolsa Família é um programa “fantástico”. Por outro lado, diz, além de insuficiente para tirar as pessoas de um nível de renda muito baixo, ele acabou concentrado nas mãos de líderes em Brasília que podem usá-lo politicamente em ciclos eleitorais.

Para a maioria dos especialistas, o crucial para o combate sustentável à desigualdade seria o Brasil voltar a crescer, até para financiar ou ampliar programas sociais e de distribuição de recursos.

Assim como ocorreu nos anos 2000, o crescimento voltaria também a viabilizar a ascensão social via trabalho.

Entre 2004 a 2014, segundo dados do FGV Social e do IBGE, quase 80% do aumento da renda dos brasileiros veio de mais e melhores empregos.

Ao final daquele ciclo, a partir do biênio 2015-2016, quando o desemprego subiu, 4,1 milhões de famílias caíram para as classes D e E, ficando abaixo de um teto de renda mensal de R$ 2.370, segundo a consultoria Tendências.

Isso anulou rapidamente a ascensão social registrada entre 2005 e 2012, quando o aumento dos rendimentos tirou 3,3 milhões de famílias da base da pirâmide.

Com a volta do crescimento econômico, mesmo que moderado, quase 4 milhões de famílias poderiam voltar a ascender às classes C, B e A até 2022. E voltar a representar quase a metade da população.

Veja as manchetes e editoriais dos principais jornais hoje (20/08/2019)

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MANCHETES

O Globo

Em meio à crise, Receita demite subsecretário
Temor de que EUA parem de cortar juros eleva dólar
UFRJ deve perder verba com novo critério do MEC
Dodge diz que punição a autoridade pode ser ‘abuso’
Ação de estado e prefeitura encontra até casa em árvore
Witzel orienta a evitar ponto de ônibus em tiroteio
Paraguai declara que Hezbollah é terrorista

O Estado de S. Paulo

Cintra troca o número 2 da Receita e tenta conter crise
Metade dos líderes na Câmara rejeita ‘nova CPMF’
Future-se atrairá 1/4 das federais, prevê Weintraub
Sequestrador de Olivetto deve ser extraditado
Fundo quer comprar aeroporto de Cumbica
Dono da Léros foi condenado por calote em SP

Folha de S. Paulo

Entre as democracias, Brasil lidera concentração de renda
Novo favorito à PGR critica Lava Jato e nega elo com Flávio
Acordo comercial Brasil-EUA não deve prever fim de tarifas
Número 2 da Receita cai em meio a pressão do Planalto
Curitiba ignorou repasse de Guedes a firma de fachada
Queimadas no Paraguai e frente fria escurecem a tarde de São Paulo

Valor Econômico

Saída dos estrangeiros da bolsa é a maior em 23 anos
Alemanha fala em € 50 bi para lidar com crise
Divergências agravam a situação da Oi
Governo vai fiscalizar barragens em fazendas
Bolsonaro vai extraditar sequestrador de Olivetto para o Chile
Empresas vão à Justiça anular acordos sobre terceirização

EDITORIAIS

O Globo

Bolsonaro desagrada ao agronegócio

Discurso e ações antipreservação criam tensões diplomáticas e riscos de retaliações no comércio exterior

Já foram várias as demonstrações do presidente Bolsonaro de que ele resiste a descer do palanque eleitoral. Parece encantado em eletrizar a extrema direita que o apoia, com uma retórica incandescente e, por vezes, inadequada a um chefe do Executivo. Fala para poucos e barulhentos convertidos, especializados em usar redes sociais para dar uma ideia falsa do tamanho que de fato têm.

Um problema ainda maior é que Bolsonaro tem conseguido prejudicar interesses concretos do país, ao desfechar ataques preconceituosos, e contaminados por altas dosagens de ideologia, contra a preservação do meio ambiente.

O universo bolsonariano — e do seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles —é povoado de ONGs mal intencionadas, tripuladas por comunistas; que também estão aparelhados no Inpe, a fim de adulterar imagens de satélites para mostrarem um desmatamento na Amazônia que não existe. No pano de fundo, interesses poderosos agem para subtrair a Amazônia do Brasil.

Nem todas as ONGs são sérias, e o aparelhamento é antiga técnica de extremistas que têm projetos de poder autoritários. Mas é preciso ser sensato, mais ainda um presidente da República.

Bom senso que falta nos ataques de Bolsonaro e Salles ao Fundo Amazônia, para o qual Noruega e Alemanha destinaram R$ 3 bilhões em doações, com a finalidade de apoiar projetos autossustentáveis na região. Os dois países batem em retirada, mas os próprios governadores dos estados da Amazônia Legal (Amapá, Acre, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia e Tocantins) formalizaram em documento sua posição de “defensores incondicionais” do fundo, anunciando que dialogarão diretamente com noruegueses e alemães, o que já foi comunicado oficialmente a eles e aos franceses, também preocupados com o rumo da política ambiental de Bolsonaro.

O agronegócio já havia alertado o recém-eleito presidente do risco de boi-
cote às exportações brasileiras de commodities, caso a devastação se alastre. Nos últimos dias, os veículos semanais alemães “Der Spiegel” e “Die Zeit” conclamaram reações contra o Brasil em toda a Europa. “É hora de sanções”, defendeu o “Die Zeit”..

À medida que aumenta o risco de retaliações concretas, representantes do agronegócio sobem o tom em alertas ao Planalto. Em entrevista ao “Valor Econômico”, o ex-ministro Blairo Maggi, grande produtor de soja, preocupa-se porque o discurso “agressivo” de Bolsonaro é capaz de desmantelar o acordo comercial Mercosul-UE, do qual consta uma cláusula ambiental. E Blairo já ganhou do Greenpeace o prêmio sarcástico “Motossera de Ouro”.

A consciência ambientalista se fortalece no Brasil, dentro do próprio agronegócio, como demonstram vários de seus líderes. Entre eles a senadora Kátia Abreu, da bancada ruralista e também ex-ministra.

O presidente precisa se curvar à realidade, e defender o setor mais dinâmico da economia, calando-se.

O Globo

Gastar mais com salários do que em investimentos prova ineficiência

Característica de estatais de saneamento é outro forte motivo para privatizações

Um foco de resistência clássico a privatizações são os funcionários das estatais. Invariavelmente inchadas e com uma política salarial benevolente, as companhias públicas tendem a ser defendidas por corporações que se beneficiam das distorções do estatismo. Afinal, o dinheiro do contribuinte sempre esteve à disposição para sustentar a ineficiência do Estado-empresário.

Mas a crise fiscal tem obrigado a que governantes sejam no mínimo parcimoniosos, porque falta dinheiro. Além disso, assim como a classe política parece ter entendido que a reforma da Previdência é vital, campanhas nacionalistas em defesa de empresas estatais não demonstram ter o poder de mobilização do passado.

O combate à venda de estatais vai ficando circunscrito a grupos ideológicos à esquerda e à direita, aliados a corporações de funcionários, que temem
as exigências do mercado privado de trabalho. Mas há problemas que continuarão insolúveis sem a retirada no todo ou em parte do Estado de setores-chave. É o que se tenta fazer em grande escala no saneamento básico, e não se consegue. Há agora uma chance preciosa de, por meio de projeto de lei, mudar-se a regulação do setor, para que se ampliem as possibilidades de concessões à iniciativa privada.

Que não se perca esta oportunidade. Não faltam argumentos irrefutáveis para este avanço, além dos casos de sucesso da participação de concessionárias particulares na atividade.

Reportagem do GLOBO de domingo destaca grave distorção que ocorre nessas empresas públicas: costumam privilegiar os gastos com os salários de seus funcionários em vez dos investimentos. A função prioritária dessas companhias tem sido arcar com suas folhas de pagamento, em vez de melhorar a cobertura na captação e trata-
mento do esgoto, bem como na distribuição de água de boa qualidade. Estudo do Ministério da Economia feito sobre 25 empresas públicas do setor mostra que, somadas, elas gastaram, entre 2010 e 2017, R$ 68,1 bilhões com a folha de pagamento, R$ 8,4 bilhões a mais que os R$ 59,7 bilhões investidos.

Entende-se por que o Brasil, uma das dez economias do mundo, continua a apresentar indicadores indigentes: se 83,5% da população têm acesso à água tratada, o esgoto de 52,3% não é coletado.

Entre os maus exemplos está a Cedae, do Rio de Janeiro: gasta bem mais com salários do que investe em sua operação (em 2017, R$ 1,1 bilhão em salários e apenas R$ 163 milhões foram investidos). O resultado é que a cobertura do serviço de esgoto da empresa, no estado que tem o segundo PIB do país, é de apenas 44,84%. Mas políticos e sindicatos resistem a que a questão seja resolvida.

O Estado de S. Paulo

Interferência indevida

O presidente Jair Bolsonaro tem se dedicado nos últimos dias a constranger órgãos de controle e investigação, que por definição devem estar completamente a salvo de pressões políticas – afinal, depois de tantos protestos dos cidadãos contra a corrupção, o mínimo que se espera é que não haja mais no País quem consiga escapar da lei em virtude de conexões e boas relações com quem está ocupando temporariamente o poder.

A mais recente crise foi deflagrada no dia 15, quando Bolsonaro tornou pública sua insatisfação com o superintendente da Polícia Federal (PF) no Rio de Janeiro, Ricardo Saadi, e anunciou sua substituição. Ou seja, passou por cima de várias instâncias na cadeia de comando na PF, subordinada ao ministro da Justiça, Sergio Moro, para satisfazer sabe-se lá que interesses pessoais.

As dúvidas sobre as motivações do presidente acentuaram-se ainda mais quando este anunciou que o substituto do superintendente Saadi seria o delegado Alexandre Saraiva, atual superintendente da PF no Amazonas e que é amigo da família Bolsonaro. A situação é inusitada: o presidente pode vetar qualquer nome indicado para ocupar cargos na PF, mas quem nomeia os superintendentes é o diretor- geral do órgão, e não o presidente da República, exatamente para evitar indicações políticas.

Segundo informou reportagem do Estado, a avaliação no Palácio do Planalto é que o superintendente Saadi não fez o bastante para impedir “desmandos” nas investigações que envolvem o senador Flávio Bolsonaro, um dos filhos do presidente. Quando era deputado na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, Flávio Bolsonaro tinha um assessor, Fabrício Queiroz, que, embora modesto, movimentou R$ 1,2 milhão em sua conta – fenômeno até agora sem explicação convincente. Essa situação é objeto de investigação, que tem levado a mais perguntas do que a respostas, em especial sobre uma suposta relação entre a família Bolsonaro e as milícias no Rio de Janeiro.

“Quem manda sou eu, vou deixar bem claro”, disse o presidente Bolsonaro a propósito da troca na Polícia Federal. “Eu dou liberdade para os ministros todos, mas quem manda sou eu”, acrescentou o presidente, reafirmando pela enésima vez seu poder. Das duas, uma: ou o presidente está inseguro sobre suas prerrogativas ou está convencido de que as urnas lhe conferiram um poder que não pode ser tolhido por limites institucionais – isto é, o poder do grito. Como a ilustrar esse estado de ânimo, Bolsonaro disse que não será um “presidente banana”.

A truculenta interferência de Bolsonaro na PF causou previsível reação dos policiais federais, cuja insatisfação ameaçou gerar grave crise interna, pressionando o ministro Sergio Moro. Para reduzir a fervura, Bolsonaro, a pedido de Moro, aceitou a nomeação de outro delegado para a Superintendência no Rio.

A crise na PF não foi o único tumulto causado pelo estilo do presidente Bolsonaro de governar em atenção a seus interesses familiares. Depois de acusar a Receita Federal de promover uma “devassa na vida financeira” de alguns de seus parentes, Bolsonaro determinou a substituição do superintendente do órgão no Rio e dos delegados da Receita no Porto de Itaguaí (RJ) e na Barra da Tijuca.

A pressão de Bolsonaro coincidiu com as investigações da Receita a respeito de crimes praticados por milícias em operações no Porto de Itaguaí. Em mensagem a colegas, o delegado da Receita no Porto de Itaguaí, José Alex Nóbrega de Oliveira, denunciou interferência de “forças externas que não se coadunam com os objetivos da fiscalização”. O caso todo gerou um princípio de rebelião no comando da Receita.

Ao levantar suspeitas sobre a atuação da PF e da Receita Federal em assuntos de seu interesse, Bolsonaro constrange de modo inaceitável o trabalho desses órgãos, cujas eventuais providências a respeito da família do presidente doravante tendem inevitavelmente a ser julgadas não por seu aspecto técnico, mas sim à luz desse atrito – ou seja, a isenção da PF e da Receita estará sempre sob dúvida. Agindo dessa maneira, o presidente viola claramente o princípio constitucional da impessoalidade, que jurou respeitar, e sinaliza disposição de colocar a si e a seus familiares na condição privilegiada de inimputáveis.

O Estado de S. Paulo

Distante da boa educação

É um truísmo dizer que a rede digital é uma ferramenta poderosa para ampliar e aprofundar a educação. Basta pensar no volume de dados que em uma geração se tornaram acessíveis a todos pela internet ou então nas possibilidades de interação a distância, especialmente em um país com as dimensões do Brasil, para quem está no interior ou tem poucos recursos para frequentar uma instituição de qualidade. É um ponto pacífico na fortuna crítica educacional, contudo, que, se o ensino a distância é um valioso complemento ao ensino presencial, jamais será um substituto. Não à toa a Lei de Diretrizes da Educação estabelece que “a formação inicial de profissionais do magistério dará preferência ao ensino presencial, subsidiariamente fazendo uso de recursos e tecnologias de educação a distância”. Ocorre que, na prática, tem havido o inverso: o ensino a distância vem se tornando o modelo principal, e o presencial, subsidiário, e, pior, de modo desproporcionalmente intenso justamente nos cursos de formação de professores. É o que revela um estudo do Todos pela Educação.

Nos últimos anos o número de ingressantes nos cursos de formação inicial de professores tem aumentado consideravelmente, sobretudo em razão dos cursos a distância oferecidos pela rede privada. Entre 2010 e 2017, as matrículas em cursos voltados à docência aumentaram 44%. Considerando- se apenas a rede privada, esse aumento foi de 162%. Das graduações voltadas à docência na rede privada, 29% eram a distância em 2010. Em 2017 chegaram a 53%. Nas redes privadas e públicas tomadas em conjunto, essa variação foi de 34% para 61%. Já para todos os demais cursos, a variação foi de 13% para 27%. Em outras palavras, pouco menos de um terço da formação superior no Brasil é feito a distância, mas quase dois terços da formação de professores são a distância. Essa magnitude não tem paralelo nem entre os países mais desenvolvidos nem entre os países em desenvolvimento com bons índices educacionais.

A profissão docente é essencialmente prática. Segundo o Todos pela Educação, com base em sólidas evidências, um curso de formação de professores deve se articular em três tipos de conhecimentos: (i) sobre os alunos e como se desenvolvem em diferentes contextos; (ii) sobre o que deve ser ensinado; e (iii) sobre como ensinar. Cursos centrados em aulas expositivas, como o são inevitavelmente nas modalidades a distância, na melhor das hipóteses podem comunicar o conteúdo a ser ensinado, mas não desenvolvem o elemento central: o ato de ensinar.

Por essa razão, nos sistemas nacionais com alto desempenho no Pisa, o mais reputado índice global de educação, a formação dos professores é feita em grande articulação com as escolas, tendo as vivências práticas como elemento central. O êxito dessa formação depende da colaboração entre os futuros professores, assim como de experiências formativas em sala de aula. Por isso, é importante que ela seja prioritariamente presencial.

Corroborando essa constatação, o Todos pela Educação agrega dados que comprovam o pior desempenho de alunos dos cursos de ensino a distância. O porcentual de alunos com notas brutas inferiores a 50 no Enade é de 75% para alunos de cursos a distância. Para os cursos presenciais, é de 65%. A chance de um aluno de Pedagogia a distância estar no grupo das melhores notas do Enade é de 21%. Para um aluno presencial, é de 30%. Em todos os demais indicadores, os cursos a distância têm desempenho pior, mesmo considerando alunos de perfis socioeconômicos semelhantes.

Por isso o Todos pela Educação afirma, com base em evidências irrefutáveis, que “o caminho que está sendo seguido pelo Brasil vai na contramão do que se percebe nos sistemas educacionais mais avançados, onde a formação prática é o elemento central da formação inicial de professores”. Assim, a proliferação do ensino a distância deve respeitar critérios qualitativos e ser contrabalançada pelo fomento aos cursos presenciais. Somente dessa maneira esse modelo educacional se justificará.

O Estado de S. Paulo

Horizonte menos nublado

Boas notícias no mercado internacional e um pouco menos de pessimismo no Brasil marcaram o começo da semana, depois de uma quinzena assombrada pelo temor de uma nova recessão global. Todos poderão ganhar, se os fatos confirmarem os sinais animadores da China e da Alemanha e se houver, enfim, uma trégua prolongada entre os governos americano e chinês. No caso do Brasil, as expectativas pouco mudaram, mas o mau humor dos analistas parece ter chegado a um limite. O crescimento econômico baterá em 0,83% neste ano e em 2,20% no próximo, segundo projeções do mercado financeiro e das grandes consultorias. Há uma semana as estimativas indicavam expansão de 0,81% em 2019 e 2,10% em 2020, segundo o boletim Focus do Banco Central (BC). As perspectivas ainda são ruins, especialmente num país com 25 milhões de desempregados, subempregados e desalentados. O governo continua devendo medidas para animar os negócios, mas qualquer indício positivo, nesta altura, pode fazer diferença.

Qualquer melhora do lado externo também pode ser relevante, porque o comércio brasileiro, embora ainda superavitário, tem perdido vigor nos últimos meses. A crise na Argentina, importante mercado para as exportações brasileiras de manufaturados, continua impondo perdas à indústria do Brasil. O ministro da Fazenda, Paulo Guedes, parece menosprezar o comércio de seu país com o maior parceiro sul-americano, mas ele poderia ter alguma surpresa se pedisse, por exemplo, a opinião do pessoal da indústria automobilística.

A Argentina continuará em dificuldades por algum tempo, e também por isso é muito importante a melhora de perspectivas na China, maior compradora de produtos agropecuários brasileiros, e da Alemanha, um dos mais importantes mercados para exportações do Brasil. O governo chinês anunciou medidas para facilitar o crédito ao setor privado. Com isso, a atividade da China, uma das principais locomotivas da economia mundial, deverá revigorar-se. No caso da Alemanha, a boa novidade é a declaração do ministro de Finanças, Olaf Scholz, sobre a possível liberação de cerca de 50 bilhões de euros do Tesouro para gastos extras. Segundo recente relatório oficial, no segundo trimestre o Produto Interno Bruto (PIB) alemão foi 0,1% menor que no primeiro. No caso da China, as notícias haviam sido de crescimento industrial abaixo do previsto.

A melhora do cenário será bem mais sensível se os governos americano e chinês abandonarem a guerra comercial ou, no mínimo, tentarem uma trégua prolongada e com possibilidade razoável de levar a uma pacificação. Negociadores americanos e chineses voltarão a conversar em uma semana ou, talvez, em dez dias, segundo informou em entrevista à Fox News o diretor do Conselho Econômico Nacional da Casa Branca, Larry Kudlow. Iniciada há mais de um ano, essa guerra espalhou insegurança nos mercados e prejudicou a expansão dos investimentos e do comércio internacional, impondo, portanto, uma trava ao crescimento da economia global.

Nos mercados, o começo da semana foi também marcado pela expectativa em relação às próximas atas do Federal Reserve (Fed, o banco central americano) e do Banco Central Europeu (BCE). Está prevista para quarta-feira a publicação do texto do Fed. O do BCE deve sair no dia seguinte. Os dois documentos poderão trazer, segundo se espera, indicações mais claras sobre como ficarão os juros nos dois maiores mercados do mundo rico nos próximos meses. As perspectivas são de preços muito bem comportados nos Estados Unidos e na Europa. Deve haver espaço, de acordo com muitos analistas, para políticas de juros frouxas e estimulantes nos dois lados do Atlântico Norte.

Mais do que em qualquer outro momento, empresários brasileiros devem estar prontos para aproveitar oportunidades no mercado internacional. Mas seu trabalho poderá ficar complicado se o presidente Jair Bolsonaro continuar dando argumentos ao protecionismo agrícola e falando de forma imprudente sobre os parceiros comerciais do Brasil.

Folha de S. Paulo

O bebê e a água

Ou Bolsonaro — que intervém por razões pessoais em Receita, PF e Coaf — recua do modo de choque com a institucionalidade, ou será contido por ela

Agências incumbidas de fiscalizar o cumprimento das leis e de inibir nos poderosos a tendência ao abuso de suas prerrogativas atravessam um período crítico no Brasil. Tornaram-se alvo de questionamento e pressão motivados por um misto de boas e más intenções.

No centro do debate, o Ministério Público, a Polícia Federal, a Receita Federal e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) passaram por notável processo de profissionalização e modernização nas últimas décadas e têm exercido protagonismo no cerco aos crimes de colarinho branco.

A ascensão dessas burocracias não ocorreu sem custos. Fortaleceu-se nelas o corporativismo, que amiúde se expressa como autoproteção excessiva, ensimesmamento e repulsa à autocrítica. A margem e a tentação para cometer abusos em procedimentos investigativos também parecem ter crescido.

A agenda de ajustes sensata para essas agências pauta-se, portanto, na diretriz de mitigar danos colaterais do seu soerguimento sem feri-las na capacidade de investigar com autonomia e eficácia. Trata-se, em termos coloquiais, de não jogar a criança fora com a água do banho.

Enquadra-se nesse esforço bem intencionado de dar mais equilíbrio à atuação das instituições fiscalizadoras a discussão em curso sobre a lei de abuso de autoridade.

Também nessa linha, amadurece em Brasília o debate sobre uma reforma da Receita Federal que, além de esclarecer os seus protocolos de vigilância e autuação, diminua a brutal incerteza que a movimentação errática e ubíqua da máquina do fisco federal impõe sobre os negócios e os empregos no Brasil.

Já os oportunistas mal intencionados, em busca de blindagem contra investigações, se aproveitam da onda de questionamento às organizações de controle para tentar atingi-las no seu âmago.

É o que faz Jair Bolsonaro (PSL) ao atropelar etapas hierárquicas e meter-se em movimentações de cargos de chefia na PF, na Receita e no Coaf. Fica patente o ânimo de punir servidores cujo trabalho causou constrangimento a familiares do presidente da República.

Ajoelhar-se ante a tal capricho do mandatário equivaleria a retroceder ao tempo das cavernas da organização política. Fazem bem os comandos das corporações ao ameaçarem um movimento de demissão coletiva caso a sandice prospere.

Ainda assim, o rolo compressor dos expurgos presidenciais esmagou um servidor nesta segunda (19), com a substituição do número dois do fisco federal, João Paulo Ramos Fachada. O descomedimento do chefe de Estado é tamanho que cabe indagar, inclusive à Justiça, se não há desvio de finalidade do mandatário nas intervenções.

Se não recuar do modo de choque com a institucionalidade, Jair Bolsonaro terá de ser contido por ela.

Folha de S. Paulo

Novela rodoviária

Parece não ter fim a acidentada construção do Rodoanel Norte, parte final da obra concebida para propiciar a interligação entre rodovias e aliviar São Paulo do intenso tráfego de caminhões.

Os anos passam, as previsões de conclusão se alongam e as despesas explodem, numa daquelas típicas e deploráveis demonstrações de incompetência do poder público em zelar pelos prazos anunciados e pelo dinheiro do contribuinte.

Reportagem desta Folha dá conta de que o governo paulista estima entre R$ 800 milhões e R$ 1 bilhão o custo adicional para encerrar a novela rodoviária, que foi orçada em R$ 4,3 bilhões há seis anos e já consumiu R$ 6,85 bilhões.

Na hipótese do valor mais alto, o empreendimento sairá 83% mais caro que o previsto de início. Com desapropriações de casas e terrenos, não surpreenderá se a quantia final exceder os R$ 10 bilhões.

É sem dúvida complexa a realização do trecho, de 44 km de extensão, especialmente por atravessar uma área de mata atlântica, o que exige a construção de viadutos de até 20 m de altura. Algum imprevisto poderia ser aceitável em empreitada de tal magnitude.

O que se presencia, porém, é uma sucessão de episódios que contradizem a autopropaganda do PSDB paulista sobre sua eficiência na gestão de recursos públicos.

Como se sabe, Paulo Vieira Souza, ex-diretor da Dersa (empresa de obras viárias do estado), foi condenado por ilícitos em obras do trecho sul do Rodoanel.

Quanto ao setor norte, investigações da Lava Jato apontaram desvios de R$ 625 milhões, rechaçados pelas empreiteiras. Ex-secretário de Logística e Transportes do governo Geraldo Alckmin, Laurence Casagrande chegou a ser detido por cerca de três meses em decorrência de suspeitas de corrupção e tornou-se réu na Justiça Federal.

No quesito administrativo, chama a atenção que o governo João Doria não tenha conseguido fornecer à reportagem informações precisas sobre o estágio das obras, que foram suspensas em razão de possíveis irregularidades.

Agora, a Secretaria de Logística e Transportes contratou o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) como objetivo de identificar a parcela já concluída. O governo dividirá a nova licitação por três trechos.

Diante de tantas idas e vindas, é difícil acreditar em datas definitivas para a conclusão. Perdem os contribuintes, mais uma vez lesados pela incúria de governantes, bem como a cidade e a economia paulista, que terão de esperar pelos benefícios a esta altura extremamente custosos do Rodoanel.

Projeto de Eliziane Gama prevê convocação de plebiscito ou referendo pelos cidadãos

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A CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania) do Senado analisa projeto de lei da líder do Cidadania na Casa, Eliziane Gama (Cidadania-MA), que confere aos cidadãos a possibilidade de convocar plebiscitos ou referendos. Pela legislação atual (Lei 9.709, de 1998), a convocação de um plebiscito ou de um referendo se dá por decreto legislativo, proposto por pelo menos um terço dos membros do Senado ou da Câmara dos Deputados, não prevendo a iniciativa popular.

Plebiscitos e referendos são consultas ao povo visando decidir sobre temas relevantes ao País, explica o site do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). A principal diferença é que o plebiscito é feito antes da palavra final do Parlamento sobre o assunto consultado, enquanto o referendo ocorre posteriormente, cabendo ao povo ratificar ou não a matéria aprovada pelo Congresso Nacional.

Pelo projeto proposto por Eliziane Gama (PL 3.961/2019), a convocação de plebiscitos ou referendos também poderá ocorrer por iniciativa popular. Essa iniciativa popular consistirá na apresentação do decreto legislativo com esse objetivo à Câmara dos Deputados, assinado por pelo menos 1% do eleitorado nacional, distribuído por pelo menos cinco estados, com não menos que 0,3% dos eleitores de cada um deles.

A senadora reforça, na justificativa da proposta, que as eventuais iniciativas de convocação de plebiscitos ou referendos seguirão o padrão já adotado para as iniciativas populares que tratam de projetos de lei. Um dos casos mais notórios é a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135, de 2010), que nasceu de iniciativa popular, porém tramitou na Câmara dos Deputados e no Senado e depois foi sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que pudesse entrar em vigor.

“A inclusão dos cidadãos entre os legitimados para a apresentação de projeto de decreto legislativo tratando sobre plebiscitos ou referendos não tira do Parlamento a prerrogativa de decidir quando o povo será consultado. O que ensejo é inserir o cidadão no procedimento, cujo teor é de profundo interesse, ligado umbilicalmente à soberania popular”, explica a senadora.

Caso seja aprovado na CCJ, o projeto poderá seguir diretamente para a análise da Câmara dos Deputados. (Com informações da Agência Senado)

Carmen Zanotto será titular da comissão mista do Programa Médicos pelo Brasil

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A deputada federal Carmen Zanotto (SC) será a representante do Cidadania na comissão mista que vai analisar a Medida Provisória 890/2019, que institui o Programa Médicos pelo Brasil, que criada pelo governo federal para substituir o Mais Médicos. A parlamentar será titular na comissão.

A instalação e a eleição do presidente e relator da comissão estão previstas para as 15 h desta quarta-feira (21), no Plenário 2 da Ala Senador Nilo Coelho (Anexo II).

O Programa Médicos pelo Brasil dará prioridade a prestação de serviços na atenção primária de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS).O principal objetivo da medida é suprir a demanda por médicos no país, além de formar especialistas em Medicina de Família e Comunidade.

Ao todo, serão disponibilizadas 18 mil vagas, sendo 13 mil em municípios de difícil acesso. Cerca de 55% das oportunidades serão em municípios do Norte e Nordeste, em áreas mais pobres. O edital com as primeiras vagas deve ser publicado em outubro.

O Médicos pelo Brasil foi lançamento no dia 1º deste mês de agosto, em cerimônia no Palácio do Planalto.

Presidente da Frente Parlamentar Mista da Saúde e defensora do fortalecimento do SUS, Carmen Zanotto disse que uma das principais novidades do Médicos pelo Brasil é a contratação dos profissionais pelo regime de Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Antes, os contratos eram temporários de até três anos. A deputada também destacou que o pagamento de gratificações, como está previsto na medida, também poderá atrair os profissionais, principalmente nos locais onde há maior gargalo de atendimento da população.

“O principal diferencial do programa é fixar o profissional no município, oferecendo a oportunidade de uma carreira sólida com todos os direitos trabalhistas, além de garantir o atendimento da população sobretudo nos locais mais longínquos”, reforçou Zanotto.

O programa será aberto a médicos brasileiros e estrangeiros formados lá fora, desde que façam o exame que permite um diploma obtido no exterior ser reconhecido no Brasil, o Revalida.

Cidadania lamenta a morte de Daniel Bonfim

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O presidente do Cidadania, Roberto Freire, divulgou nota de pesar (veja abaixo) pela morte de Daniel Bonfim, ocorrida nesta segunda-feira (19), em São Paulo.

NOTA DE PESAR

“Com pesar informamos o falecimento do companheiro Daniel Bonfim (15/01/1933-19/08/2019), militante do “Partidão” (PCB – Partido Comunista Brasileiro), companheiro de lutas na resistência à ditadura militar.

Bonfim era comandante internacional aposentado da antiga Vasp e foi o secretário do antigo Comitê de Aeronautas preso durante o regime militar e impedido de trabalhar. Foi eleito para o Comitê Central do antigo PCB no VII Congresso. Depois de anistiado, em 1989, voltou a voar, pilotando DC-10 nas linhas de São Paulo-Nova York e São Paulo-Miami.

Por sua ativa ação entre os aeronautas foi uma liderança importante e um especial amigo.

À sua família nossos sentimentos neste momento de luto.

Roberto Freire
Presidente do Cidadania”

Mercado aumenta previsão de crescimento da economia e reduz estimativa de inflação

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Projeção para a expansão do PIB passa de 0,81% para 0,83% este ano

O mercado financeiro aumentou a projeção para o crescimento da economia e reduziu a estimativa de inflação para este ano. Segundo o boletim Focus, pesquisa divulgada todas as semanas pelo BC (Banco Central), a previsão para a expansão do PIB (Produto Interno Bruto) foi ajustada de 0,81% para 0,83% neste ano.

Segundo a pesquisa, a previsão para 2020 também subiu, ao passar de 2,1% para 2,2%. Para 2021 e 2022 não houve alteração nas estimativas de 2,5%.

Inflação

A estimativa de inflação, calculada pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), caiu de 3,76% para 3,71%. Não houve alteração nas estimativas para os anos seguintes: 3,90%, em 2020, 3,75%, em 2021, e 3,5%, em 2022.

A meta de inflação, definida pelo CMN (Conselho Monetário Nacional), é 4,25% em 2019, 4% em 2020, 3,75% em 2021 e 3,5% em 2022, com intervalo de tolerância de 1,5% para cima ou para baixo.

Para o mercado financeiro, ao final de 2019 a Selic estará em 5% ao ano. Para o final de 2020, a estimativa permanece em 5,5% ao ano. No fim de 2021 e 2022, a previsão segue em 7% ao ano.

Dólar

A previsão para a cotação do dólar ao fim deste ano subiu de R$ 3,75 para R$ 3,78 e, para 2020, de R$ 3,80 para R$ 3,81.

Marco Aurélio Marrafon: Liberalismo não pode ser reduzido apenas à dimensão econômica

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Tema que vem dominando a agenda política brasileira, o pensamento liberal tem sido vítima de reducionismos que o restringem à esfera econômica, em tese permitindo que ele seja vinculado a pautas conservadoras e mesmo intervencionistas na liberdade das pessoas, que representam, em essência, violação a firmes postulados liberais.

Contudo, as premissas políticas do liberalismo envolvem forte rejeição a qualquer forma de concentração de poderes, implicando em consistente defesa das Instituições em um sistema de controles recíprocos que possam evitar arroubos e decisões políticas personalistas. Nessa esteira, possibilitam maior segurança jurídica para o livre desenvolvimento das pessoas e da economia na esfera privada.

Assim, considerando que não há tradição de pensamento liberal pleno e genuíno na história brasileira, a Coluna de hoje apresenta as diferentes faces do liberalismo enquanto movimento teórico europeu de origem difusa, de distintas acepções e erguido sobre uma grande diversidade de ideias, com incursões no campo do direito, da economia, da política, na teoria da moral e na teoria da sociedade.

Ao final, constata-se que elas são conectadas e indissociáveis, sob pena de uma contrapor a outra e, desse modo, desnaturar as bases teóricas dessa importante vertente do pensamento moderno.

Apesar de haver menções ainda no período medieval, é comum considerar a Revolução Gloriosa inglesa (final do século XVII) como um dos principais pontos de partida para a reflexão liberal.

O liberalismo se desenvolveu nos séculos XVIII e XIX em oposição ao despotismo e se apresentou de formas diferentes, servindo para indicar desde um partido político, uma ideologia política ou metapolítica (uma ética) e até uma estrutura institucional específica, conforme explica Nicola Matteuci [1].

De qualquer modo, é possível encontrar uma base comum, assentada, segundo Olivier Nay, na seguinte intuição principal: “a sociedade é tanto mais justa e harmoniosa porque reconhece uma extensão importante à autonomia e à liberdade do indivíduo” [2].

Seguindo o itinerário proposto por Nay, essa base comum prescreve a primazia do indivíduo enquanto fundamento das relações de poder e revela três importantes bandeiras do pensamento liberal:

i) preferência do princípio da liberdade sobre o da autoridade, isto é o direito fundamental à autonomia, à segurança e à livre escolha do modo de vida e livre expressão de opiniões e pensamentos. Essa preferência se assenta em uma ética da responsabilidade (o indivíduo tem aptidão natural para decidir o que é racionalmente bom para si e para os demais) e na concepção de que a ordem jurídica tem o papel fundamental de garantir essa liberdade;

ii) a esfera privada tem valor superior à comunitária, devendo as instituições coletivas, como o Estado, realizar a função primordial de proteger o indivíduo;

iii) os poderes estatais devem ser controlados e limitados, de modo a evitar abusos de autoridade pelos agentes públicos [3].

Essas premissas levam a, ao menos, cinco grandes princípios do liberalismo:

i) a recusa ao absolutismo e, logo, ao totalitarismo,

ii) a defesa das liberdades individuais e políticas, o que pressupõe a crença no racionalismo humano, na perspectiva progressista (o amanhã será melhor que o hoje) e a exigência de garantia dos direitos fundamentais;

iii) pluralismo, que serve de garantia à livre expressão das formas de vida;

iv) soberania do povo e as questões de governo, vistas como assunto propriamente humano e não religioso e;

v) defesa da democracia representativa como forma de assegurar um governo estável e moderado, verdadeiro antídoto contra personalismos autoritários e populismos [4].

Autores críticos, como Antonio Carlos Wolkmer, enxergam o liberalismo como uma ideologia global instituinte de uma nova visão de mundo comprometida com uma ética individualista que marcou a luta da burguesia histórica contra o feudalismo autoritário [5].

Todavia, mesmo eles reconhecem a repercussão do liberalismo em diferentes aspectos da realidade. Esses aspectos perpassam e vão muito além da mera dimensão econômica, tendo incursões especialmente no campo político, moral e jurídico. Invocando Roy Magridis, Wolkmer apresenta três núcleos enquanto elementos caracterizadores do liberalismo [6].

Nessa perspectiva, o núcleo moral, ou liberalismo filosófico, propõe a afirmação dos valores assentados nos princípios da liberdade pessoal, do racionalismo, da tolerância, da dignidade e da crença na vida, formando uma cosmovisão global de proteção ao indivíduo [7].

Por sua vez, o liberalismo econômico está relacionado, especialmente, “aos direitos econômicos, à defesa da propriedade privada, ao sistema de livre empresa e à economia de mercado livre do controle estatal” [8].

Daí o direito de propriedade, direito à herança, direito de acumular riqueza e capital, bem como a liberdade de produzir, comprar e vender [9].

Já o núcleo do liberalismo político se refere, principalmente, “aos direitos políticos, ou seja, ao direito ao voto, direito de participar e de decidir que tipo de governo eleger e que espécie de política seguir” [10], direito de participar da Administração pública, dentre outros.

Seus princípios básicos são o consentimento individual, a teoria da separação dos poderes e a prevalência da soberania popular [11].

Esses princípios são combinados com os pilares do primeiro constitucionalismo, enquanto expressão do que pode ser considerado o liberalismo jurídico: defesa do Estado de Direito, do império da lei, da supremacia da Constituição e dos direitos e garantias individuais.

Enfim, é possível concluir que esses núcleos e/ou postulados do liberalismo são indissociáveis, de modo que os fins do liberalismo apenas se efetivam quando considerados em conjunto.

É impossível se pensar em liberalismo econômico sem pensar em liberdade individual e sem a segurança jurídica oriunda do sistema constitucional de controle e limitação do poder estatal.

Em suma, defender liberalismo econômico combinado com intervenção na seara moral ou dos costumes dos cidadãos ou mesmo com personalismo e concentração de poder contra as instituições, significa apoiar o sistema capitalista em regime politicamente autoritário, de forte viés antiliberal. (Revista Consultor Jurídico – 19/09/2019)

Marco Aurélio Marrafon é advogado, professor de Direito e Pensamento Político na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), doutor e mestre em Direito do Estado pela UFPR (Universidade Federal do Paraná), com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional e membro do Cidadania de Mato Grosso.

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[1] MATTEUCI, Nicola. Liberalismo. In: BOBBIO, Norberto. MATTEUCCI, Nicola. PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 2vols. Brasília: UNB.

[2] NAY, Olivier. História das ideia’spoliticas. Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 195.

[3] Idem.

[4] Ibidem, p. 196.

[5] WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 121.

[6] Ibidem, p. 122.

[7] Idem

[8] Idem

[9] Idem

[10] Idem

[11] Idem

#BlogCidadania23: Vai cair a 1ª máscara de Jair Bolsonaro

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A questão do projeto que pune o “abuso de autoridade” é crucial para o bolsonarismo.

1) Se vetar, Bolsonaro compra briga com parte considerável do Congresso (inclusive com Rodrigo Maia, que se mostrou ruim em matemática ao não conseguir contar 31 braços levantados, que garantiriam o voto nominal, quando a TV mostrou mais que isso).

2) Se não vetar, estará antecipado o divórcio com parte do eleitorado que votou em Bolsonaro circunstancialmente, mas é sobretudo anti-petista e lavajatista. Essa união de governistas com oposicionistas para restringir a ação de juízes, promotores e policiais atinge em cheio a confiança dos fãs da Lava Jato.

Ao contrário do Novo e do Cidadania, partidos que se posicionaram unidos contra esse projeto que parece ser um passa-moleque na turma de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, o PSL de Bolsonaro não fechou questão e estava dividido na hora de garantir regimentalmente o voto nominal, em vez do simbólico, para a população saber, um por um, o pensamento de cada deputado.

E aí, Bolsonaro? Vai agradar e servir a quem? À base parlamentar ou ao povo brasileiro?

Fernando Gabeira: Voltas que o mundo dá

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Apesar do intenso zum-zum nacional, com leis marotas votadas na madrugada, duas notícias de fora marcaram a semana: o risco de estagnação econômica mundial e a volta do peronismo na Argentina. O interesse por política externa nunca foi muito grande no Brasil. Mas tem crescido nos últimos anos. Senti isso na Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Estudantes a frequentavam com interesse para ouvir os debates.

Bolsonaro fez parte dela, por alguns anos. Naquele momento, ainda não era um líder popular nacional. Tornou-se presidente, e discutir com líderes populares é mais áspero: os seguidores são hiper-sensíveis à imparcialidade ou ao preconceito.

Mas fatos são fatos. A política externa conduzida por Bolsonaro precisa ser criticada, pois pode nos levar a um isolamento perigoso no momento de uma crise mundial.

Bolsonaro aproximou-se dos Estados Unidos. Nada a reparar. A aproximação com os Estados Unidos estava no seu programa e, creio, é apoiada pela maioria dos eleitores brasileiros.

Bolsonaro aproximou-se dos Estados Unidos e está se afastando de outras partes do mundo. Isso não estava no programa. Muito menos reduzir o movimento a uma proximidade com a família Trump, como se política externa fosse tocada por amizades familiares, e não interesses nacionais.

Bolsonaro aproximou-se de Israel. Nada a reparar. Mas se afastou do mundo árabe ao anunciar que levaria a Embaixada do Brasil para Jerusalém. Não completou o plano, mas o desgaste ficou no ar.

Bolsonaro assinou um acordo comercial com a Europa, condicionado ao respeito ao meio ambiente. Nos últimos tempos, tem se dedicado a criticar a Europa, afirmando, injustamente, que a Alemanha quer comprar a Amazônia a prestação.

O acordo com a Europa ficou mais difícil, pois Alberto Fernández, vitorioso nas prévias argentinas, não o quer agora. Acha, como o ex-chanceler Celso Amorim, que o momento não é adequado para o Mercosul. Isso não impediria o Brasil de ir adiante. O próprio acordo prevê que os países entrem de acordo com seu ritmo. Quem aprovar a entrada não precisa esperar o outro.

Comas declarações de Bolsonaro, dificilmente avançaremos. Ele cancelou uma reunião com o chanceler francês para cortar o cabelo. Os franceses não entenderam essa emergência capilar.

Bolsonaro já abriu uma guerra contra os peronistas que devem voltar ao poder. Teme que os argentinos invadam o Sul, fora do verão, como os venezuelanos em Roraima.

A Argentina estava aí antes de Bolsonaro e continuará depois dele. São relações de Estado que precisam ser desenvolvidas, e não uma troca de insultos ideológicos.

Para completar as trapalhadas no Sul, o governo Bolsonaro quase derruba seu aliado paraguaio, com o acordo sobre Itaipu. Além dos problemas criados e do ressentimento nacionalista que reavivou, apareceu na negociação uma empresa brasileira ligada a um suplente do senador Major Olimpio.

Gostar de grana é realmente suprapartidário, mas torna-se algo muito sério quando envolve uma negociação delicada como a de Itaipu.

O novo embaixador do Brasil nos Estados Unidos pode ser um filho de Bolsonaro. Ele já fez referência à necessidade de bomba atômica e afirma que diplomacia sem armas é ineficaz.

Já tínhamos resolvido essa questão com os argentinos, não há mais dúvida quanto à nossa política nuclear. Se somarmos a reação agressiva à eleição do que chama de bandidos de esquerda na Argentina, Bolsonaro, por meio do filho, pode nos afastar ainda mais de uma vizinhança tranquila, apesar das diferenças.

Quando deputado, Bolsonaro às vezes ficava bravo, mas discutia. Como presidente, sente-se um herói poderoso: ganhei as eleições.

Se Bolsonaro se fixasse numa relação apenas com os Estados Unidos, já seria extremamente perigoso. Mas o embaixador que pretender enviar aos EUA andava com um boné de propaganda da reeleição de Trump. A verdade é que Trump nos aproximou da OCDE. Mas o próprio Bolsonaro boicota essa aproximação ao apoiar a medida de Toffoli que neutraliza investigações da Receita.

O Brasil corre o risco de ficar apenas com Trump. Em termos pessoais, nada a declarar, pois a química humana é de fato surpreendente. Em termos nacionais, é um grande equívoco. (O Globo – 19/08/2019)

Demétrio Magnoli: Consequências econômicas do sr. Trump

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Sob o fetiche do déficit, o governo dos EUA empurra o mundo para o abismo

Não foi Donald Trump, mas Barack Obama, que encerrou quase meio século da parceria informal entre EUA e China articulada por Richard Nixon em 1972.

A cisão era inevitável: um fruto do fim da Guerra Fria e da ascensão chinesa à condição de potência global.

Contudo, Trump conduziu a rivalidade estratégica ao campo da guerra comercial e, diante da resistência chinesa, ameaça deflagrar uma guerra cambial.

Há 90 anos, uma corrida ao fundo do poço da mesma natureza desaguou na Grande Depressão.

Se Trump não fosse o Tariff Man, como se intitulou, formaria uma extensa aliança de potências para obrigar a China a desviar-se da prática de violações da propriedade intelectual das empresas estrangeiras que operam em seu território.

Mas, inspirado por assessores como Peter Navarro e Robert Lighthizer, o presidente americano segue a estrela do nacionalismo econômico primitivo.

Nessa moldura, o déficit no intercâmbio de bens, um espelho da pujança econômica dos EUA, converte-se no mal a ser erradicado. Sob o fetiche do déficit, seu governo empurra o mundo para o abismo de uma recessão geral.

A guerra comercial diminui a renda de americanos e chineses. Na ponta dos EUA, as tarifas impostas sobre produtos chineses equivalem a um forte aumento de tributação sobre os consumidores.

Na ponta da China, reduzem as taxas de crescimento econômico, provocando desvalorização da moeda.

Mas, por fatores políticos, não se concretiza a expectativa racional de um acordo de paz comercial.

Trump segue obcecado com o déficit e aposta nos dividendos eleitorais do confronto com o “inimigo externo”.

Xi Jinping não pode retroceder sem macular a imagem de líder inconteste, “o segundo Mao”, elaborada para entronizá-lo como presidente eterno, especialmente no momento em que enfrenta o desafio da revolta em Hong Kong.

“Guerras comerciais são fáceis para vencer”. A resistência chinesa, expressa em restrições às importações de produtos agrícolas americanos, transforma a declaração original de Trump num espectro que o atormenta. Diante do fracasso da ofensiva tarifária, seu governo deixa-se seduzir pela tentação da escalada rumo à guerra cambial.

Depois de qualificar a China como “manipulador cambial”, a Casa Branca pressiona o Fed (banco central dos EUA) a desvalorizar o dólar, às custas de brusca redução dos juros e, talvez, da compra em massa de moeda chinesa.

Se o Fed ceder, tornando-se um utensílio das políticas presidenciais, manchará a credibilidade dos mercados de capitais dos EUA e da própria moeda do mundo.

A China manipulou o câmbio, mas apenas até 2010. De lá para cá, pelo contrário, o governo chinês promoveu a apreciação do renminbi, a fim de atrair investimentos.

A decisão recente de permitir a desvalorização para além da fronteira simbólica de sete iuans por dólar é consistente com a retração das taxas de crescimento chinesas.

Ela suaviza os efeitos das tarifas de Trump e impede uma redução significativa do déficit americano. Mas, sobretudo, prepara a economia da China para uma guerra comercial prolongada.

A hipotética elevação do conflito ao patamar de guerra cambial destruiria o já frágil equilíbrio da economia global. A moeda chinesa experimentaria novas desvalorizações e, refletindo as baixas taxas de crescimento na Europa, o euro seguiria pelo mesmo caminho, numa espiral de contração irresistível.

O sistema internacional das economias abertas criado no pós-guerra sucumbiria à pulsão nacionalista da maior potência mundial.

A tormenta pega o Brasil no contrapé. “Cada vez mais apaixonado por Trump”, o governo Bolsonaro sabota nossa rede multidirecional de relações externas, hostilizando a União Europeia, a China, a Argentina, o Irã e os países árabes. Na hora da guerra econômica total, corremos voluntariamente o risco de figurar no registro das “baixas colaterais”. (Folha de S. Paulo – 17/08/2019)

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.