Luiz Carlos Azedo: A “ambição de poder” e a volta dos militares à caserna

Jair Bolsonaro exumou velhos conceitos e fez renascer das cinzas a “ambição de poder” da geração de militares saudosos dos 20 anos de ditadura

A volta dos militares às suas funções constitucionais específicas é o caminho para despolitizar as Forças Armadas, historicamente contaminadas pela velha compreensão positivista de que são a expressão armada e a liderança moral do povo brasileiro desde a vitória de Guararapes contra os holandeses, o mito fundador do Exército nacional. Em razão disso, muitos militares ainda acreditam que, em nome do povo, devem exercer a tutela sobre os Poderes republicanos e as demais instituições da vida pública.

Essa compreensão vem dos governos de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, que consolidaram o regime republicano e operaram uma transição na qual o poder político do país saiu das mãos da aristocracia imperial e passou aos grandes fazendeiros de café, não apenas por isso, mas quase que como uma indenização pela abolição da escravidão pela monarquia constitucionalista. Mas havia uma compreensão clara na República Velha, a partir do governo de Prudente de Moraes, de que a democracia era um poder civil, apesar de todos os problemas.

A Revolução de 1930 virou tudo de pernas para o ar. Foi um golpe de Estado que depôs o presidente Washington Luís, em 24 de outubro de 1930, articulado pelos estados de Minas Gerais, da Paraíba e do Rio Grande do Sul para impedir a posse do presidente eleito Júlio Prestes, sob alegação de fraude eleitoral. A crise econômica de 1929, que repercutiu fortemente na economia cafeeira, e o assassinato do político paraibano João Pessoa — um crime passional que se transformou numa catarse política — embalaram a conspiração liderada pelo gaúcho Getúlio Vargas com apoio do mineiro Antônio Carlos. Lideranças oriundas do movimento tenentista deram ao golpe a sustentação militar de que precisava.

Em 3 de outubro, militares liderados por Getúlio Vargas, no Sul, e Juarez Távora, no Nordeste, convergiram para o Rio de Janeiro. Getúlio Vargas tornou-se chefe do Governo Provisório com amplos poderes, revogou a Constituição de 1891 e governou por decretos. Nomeou seus aliados como interventores nos estados. Os políticos esperavam que o novo presidente convocasse eleições gerais para formar uma assembleia constituinte, mas não foi o que aconteceu. Com a derrota da Revolução Constitucionalista de 1932, na qual os paulistas tentaram destituir Vargas, a ditadura se consolidou, principalmente, a partir de 1937, com o chamado Estado Novo.

A ditadura Vargas durou 15 anos, mas não foi um regime militar, apesar do amálgama positivista do florianismo com o castilhismo gaúcho. Getúlio era um populista, que contava com grande apoio popular, por criar o salário-mínimo e instituir a legislação trabalhista. Por ironia da História, após a redemocratização de 1945, o golpismo que o levou ao poder migrou para um partido de origem liberal, criado em São Paulo para se opor a Getúlio, que passou a contar com forte apoio militar, a União Democrática Nacional (UDN). Com a fim da guerra e a destituição de Getúlio Vargas, o país passou por sucessivas crises, nas quais os militares tutelaram a política como se fossem um “poder moderador” que, na monarquia, fora exercido por D. Pedro II.

Poder civil

Mas não havia ainda uma “ambição de poder” consolidada nas Forças Armadas como instituição. Isso somente viria a ocorrer após o golpe militar de 1964, que resultou numa ditadura na qual os generais se revezaram na Presidência da República. Com a redemocratização, após a eleição de Tancredo Neves, em 1985, e o governo de José Sarney, os militares voltaram gradativamente aos seus afazeres constitucionais, porém, numa espécie de limbo doutrinário: a Guerra das Malvinas e o fim da Guerra Fria, respectivamente, subverteram os seus vetustos planos de Estado Maior, que viam na Argentina e na antiga União Soviética (e nos comunistas, por meio de uma “guerra interna, subversiva, psicológica e permanente”), os inimigos da Nação.

A eleição de Jair Bolsonaro exumou velhos conceitos e fez renascer das cinzas a “ambição de poder” da geração de militares saudosos dos 20 anos de ditadura, nos quais a carreira era uma via de ascensão política para mandar e desmandar no país. Esse é o problema com que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva se depara ao assumir o governo, porque há uma contradição entre esse sentimento agora difuso nas Forças Armadas, reforçado pela suposta presença de 8 mil militares, aproximadamente, em cargos comissionados do governo federal, e a democracia como poder civil, consagrada pela Constituição de 1988.

“Desmilitarizar” o governo e reposicionar as Forças Armadas não será uma tarefa fácil, ainda mais se uma nova doutrina militar mais democrática, já esboçada na Política Nacional de Defesa, não for consolidada. O próprio Ministério da Defesa, como instituição civil, precisa ser reformado, assunto para outra coluna. Militares geralmente são austeros, disciplinados, estudiosos, leais, patriotas e probos, mas muitos têm cacoete mandonista e nem sempre estão preparados para exercer funções tipicamente civis. Reformados, são cidadãos com os mesmos direitos de qualquer servidor público e, portanto, aptos a permanecer no governo, se for preciso, desde que para exercer cargos compatíveis com a respectiva formação. O principal problema são militares da ativa em cargos públicos não ligados à Defesa e em desvio de função, como foi o caso do general Pazuello, hoje deputado federal eleito, no Ministério da Saúde, e a militância política por militares da ativa, dentro e fora das organizações militares, que subvertem a hierarquia e a disciplina. Isso não deveria ocorrer. (Correio Braziliense – 04/12/2022)

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