Cristiano Romero: Campanha por ‘ voto útil’ é antidemocrática

Eleição em dois turnos é instrumento contra polarização

Tudo indica que o próximo presidente da República será Luiz Inácio Silva, do PT. A vitória pode não vir já na votação do próximo domingo, dia 2, mas dificilmente não será sacramentada no segundo turno da eleição. Nas últimas duas semanas, o sentimento “todos contra Bolsonaro” tomou de forma majoritária a classe política e inúmeros formadores de opinião, entre os quais, críticos contumazes do PT e de Lula.

Nesse ambiente, a campanha pelo chamado “voto útil” ganhou força, desidratando as intenções de voto de candidatos que se apresentam como uma “terceira via”, como Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB). A maioria dos votos desses dois candidatos tende a ir para o candidato do PT no primeiro turno, mas, não se tenha dúvida, uma parte relevante irá para Bolsonaro.

Ciro tem razão quando se queixa do movimento agressivo pelo voto útil que aliados de Lula têm feito, especialmente nas redes sociais (que este colunista prefere chamar de redes antissociais, uma vez que estas funcionam como instrumento de destruição de reputações, disseminação de notícias falsas, tudo isso protegido, em muitos casos, por um inaceitável anonimato). Constranger eleitores em nome da atual polarização protagonizada por Lula e o presidente Jair Bolsonaro (PL) desmoraliza o sistema de votação em dois turnos, é manobra antidemocrática. Como define acertadamente o tema um perfil do Twitter (Ivo Viu ou @IvoViu), não existe voto útil, mas, sim, “candidato inútil”.

Hoje em dia, talvez, não seja comum encontrar eleitores de classe média, com alto grau de instrução, que ajudaram a eleger Bolsonaro em 2018 e, agora, queiram votar nele novamente. Mas, antes que alguém diga que brasileiro, em sua maioria pobre e com baixo grau de escolaridade, não sabe votar, recordemo-nos de que o atual presidente perdeu quatro anos atrás em 97% dos municípios da região Nordeste.

Quando parte dos nordestinos mudaram de opinião e começaram a apoiar Bolsonaro, atribuiu-se o fato ao aumento da transferência de renda via Auxílio Brasil (antes, Bolsa Família). Nas regiões Sudeste e Sul, mais desenvolvidas e onde Bolsonaro surfou mais que Gabriel Medina, a mudança foi vista da seguinte maneira: “Não tem jeito. Esse pessoal pensa com o estômago”. Como?

Bem, institutos de pesquisa correram para saber dos beneficiários do Auxílio Brasil se o reajuste os faria votar em Bolsonaro. A maioria disse que não porque, vejam, a pergunta foi entendida como algo na linha de “o governo está comprando a sua opinião?”. No fundo, o que a elite cultural (que vai muito além dos ricos) está questionando neste momento delicado da história do país é se foi correto permitir, desde 1986, o voto dos analfabetos. Estes ficaram mais de cem anos sem direito de votar porque, no segundo reinado, na iminência da abolição da escravidão, a classe política dominante chegou à seguinte conclusão: “se aos escravos nunca foi permitido estudar, quando forem livres e puderem votar, perderemos a hegemonia política”.

Ora, se a eleição tem dois turnos e, como ocorreu na maioria das vezes desde a adoção desse sistema, nenhum candidato recebeu os votos de metade do eleitorado mais um, isso significa que os eleitores, no país de maior diversidade étnica e cultural deste planeta, marcado por enorme desigualdade de renda, optam sempre pelo candidato que mais representa seus anseios na primeira votação, deixando para o segundo turno a escolha daquele que melhor se identifica com sua opção original. O sistema é bom. Em apenas duas oportunidades (1994 e 1998), o incumbente, o então presidente Fernando Henrique Cardoso, ganhou a eleição no primeiro turno.

A senadora do Mato Grosso do Sul cultivou bom relacionamento com o atual presidente no início de seu mandato, elogiou-o em público, disse que se surpreendeu positivamente com o novo governo, principalmente, com a equipe econômica, e foi contrária à abertura de investigação contra o senador Flávio Bolsonaro por suposta prática de “rachadinha”. Interessada desde 2019 em disputar a Presidência, afirmou que receberia de bom grado apoio em 2022.

Tebet acreditou, como o ex-juiz Sérgio Moro, na falsa promessa de Bolsonaro de que não disputaria a reeleição em 2018. Está para surgir em qualquer regime, a mais estável das democracias ou a mais abominável das ditaduras, político que abra mão de poder. Isso simplesmente não existe. Para quem duvida dessa máxima, segue uma dica: procure a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) ou o ex-governador do Rio Grande do Sul Eduardo Leite (PSDB). A regra aplica-se, obviamente, aos que têm expectativa de poder.

A candidata do PMDB só se afastou do bolsonarismo durante a CPI da Covid-19, aberta pelo Senado. Ali, exerceu papel corajoso, firme, de inarredável defesa da sociedade diante do negacionismo com que o presidente da República lidou com a mais grave crise sanitária da história – o vírus contaminou até agora 34,6 milhões de pessoas no Brasil, tirando a vida de 686 mil; como o país tem apenas 2,7% da população mundial e o número de vítimas fatais representa 10,5% dos casos no planeta, é razoável supor que houve negligência no enfrentamento da pandemia.

Apesar disso, há mais duas razões para possível transferência de intenções de voto de Tebet para Bolsonaro. A trajetória política da candidata amparou-se em forte oposição ao PT. A candidata apoiou o impeachment de Dilma e chegou a chamar de “passado nefasto” o período em que o país foi governado pelo partido (2003-2016). Além disso, Tebet professa receituário econômico – seu programa foi formulado pela extraordinária Elena Landau – oposto ao do PT, e seus eleitores sabem disso. (Valor Econômico – 29/09/2022)

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