Temos neste momento no Brasil 63 milhões de pessoas na zona da pobreza, das quais 33 milhões passando fome. Quem tem fome não pode esperar. Tem urgência. Com a Covid-19, o governo precisava dar uma resposta rápida e instituiu o auxílio emergencial, descobrindo um novo contingente de necessitados, que não se encontravam em controle algum da administração. São desempregados e informais que ficaram sem renda por causa da pandemia. Muitos não têm acesso à internet para poder se regularizar. São os “invisíveis” do Cadastro Único. Toda essa parcela da população forma um gigantesco e dramático Código QR da pobreza. Precisamos acessar e ajudar essa gente.
Para isso, a experiência da Índia pode nos ser muito útil. Em 2005, o país sofreu um tsunami devastador, e o governo editou uma lei de gerenciamento de desastres. Surgiu a Autoridade Única de Identificação (Aadhaar), que implantou e cadastrou digitalmente mais de 1,2 bilhão de cidadãos no espaço de uma década, no que é considerado o maior projeto de transformação digital e de transferência de renda do mundo. O cadastro consolidou os dados essenciais dos interessados como biometria (assim entendida como fotografia, impressão digital e imagem da íris), permitindo sua conexão a uma identidade digital. Cerca de 690 milhões de indianos receberam uma identidade exclusiva vinculada a uma conta bancária, possibilitando na pandemia transferir recursos a 100 milhões de famílias, sem filas ou desvios.
Teremos de manter os programas de transferência de renda de maneira permanente no Brasil. Mesmo nos países mais ricos, isso já está claro, até porque o aumento do desemprego que a revolução digital gerou e continuará a gerar é cristalino. É evidente que o universo digital também cria novas oportunidades, mas em número inferior às que suprime. O importante é que sejam programas de Estado, e não de governo. O governo se forma e se legitima a cada eleição. O Estado é a macroestrutura permanente que subsiste para além do jogo político.
Esses programas têm alguns problemas, dois dos quais relevantes. Primeiro: é sempre perigoso o uso político que acabam gerando, especialmente em países com enorme desigualdade de renda, com hordas de desempregados, como o nosso. É curioso constatar como o atual governo — que teve como uma de suas bandeiras na eleição a denúncia do caráter eleitoreiro do Bolsa Família — prolonga e amplia sem critérios racionais o auxílio.
Outra questão essencial são os valores que podem ser transferidos aos necessitados sem gerar uma situação financeira insustentável. O meritocrático projeto do senador Eduardo Suplicy que assegura uma renda básica da cidadania, apesar de aprovado, nunca foi implementado por ausência de dotação orçamentária. Cálculos e projeções demonstraram ser uma proposta financeiramente insustentável.
Os programas de transferência de renda são irreversíveis. Quem sabe em futuro próximo possam até estar vinculados a frentes de trabalho. Fundamental que sejam permanentes, não troquem de nome nem de cartões a cada eleição e que sejam economicamente sustentáveis. Devem ser debatidos com a sociedade e constar do Orçamento anual, sem estratagemas secretos. Criando uma identidade digital, poderíamos realizar transferências via Pix reduzindo custos e desvios. Identificando nossos milhares de “invisíveis”, os tiraríamos da escuridão para a luz. (O Globo – 06/09/2022)
Luiz Roberto Nascimento Silva é advogado e foi ministro da Cultura