Paulo Hartung: Democracia ou democracia!

As contingências desafiantes, e até mesmo surreais, do nosso tempo demandam o ecoar de um brado peculiar neste 7 de Setembro: Democracia ou democracia! E isso no emblemático bicentenário do “Independência ou Morte”, que simboliza a conquista da autonomia nacional, em 1822, e no ano em que temos eleições decisivas para Poderes.

Ou seja, no Dia da Independência, além de festejarmos uma conquista memorável, é imprescindível reverberar a defesa incondicional do “Estado de Direito Sempre”, avalizado, entre outros, por eleições livres, com suporte da urna eletrônica. Resta evidente que a ação em prol das instituições democráticas passa também pela constante busca do aperfeiçoamento e de atualização.

É lamentável que, diante de tragédias como a fome, a violência, a destruição ambiental e os problemas crônicos da saúde e da educação, estejamos despendendo energias para defender uma conquista que já deveria estar consolidada entre nós: a democracia. Importa lembrar que, apesar de imperfeito, como toda obra humana, o sistema democrático é o melhor que a civilização pôde constituir para organizar a disputa e o exercício do poder em prol da cidadania.

E trabalho é o que não falta na direção de um Brasil justo e inclusivo. Trata-se de uma agenda gigantesca e que deveria ser absoluta prioridade neste debate eleitoral. Em linhas gerais, o Brasil, que historicamente desperdiça oportunidades, vai ter de encarar uma realidade nada amigável, nos planos nacional e internacional.

O mundo está andando à moda de caranguejo, de lado, sem o menor resquício da bonança de tempos atrás. A pandemia deteriorou todos os indicadores, e ainda com um rebote inflacionário. A Europa já cambaleava; com a invasão russa na Ucrânia, o quadro só piora. A política de juros dos Estados Unidos desconcerta ainda mais os passos planetários. China e Ásia, como um todo, não apresentam o desempenho de outrora. Frentes populistas de acenos totalitários minam a democracia. E o modelo de globalização, que já vinha se corroendo, vê sua cadeia de suprimentos entrar em colapso.

No nosso país, o tempo não será menos pedregoso. Apesar de melhoras no mercado de trabalho e de desempenho do Produto Interno Bruto (PIB), já convivemos com um descrédito crescente quanto aos rumos da economia. Especialmente em razão de medidas inconsequentes e eleitoreiras, sem lastro técnico, que comprometem as finanças públicas e desancoram expectativas.

A educação básica sofreu, no nosso país, um baque muito mais tsunâmico do que no resto do mundo durante a pandemia. Nossas crianças e jovens estiveram longe das salas de aula por período muito extenso. O Sistema Único de Saúde (SUS) passou por uma prova de fogo, ficando nítido que precisa ser repensado e robustecido. O que dizer da violência e da segurança pública, cujos indicadores e realidade são trágicos? O enfrentamento dessas e de outras questões muito preocupantes, infelizmente, perde protagonismo ante a polarização em curso. São desafios que se avolumam e se apresentarão ainda mais problemáticos em 2023.

Independentemente da liderança que saia vencedora das urnas, o dever de casa se impõe e exige que se “chegue chegando”, como se diz. Não há tempo a perder, nem escusas acerca de uma possível ignorância desta dura ambiência que nos espera e cujas raízes já se vêm firmando há muito. Também é preciso parar de repetir teimosamente os erros do passado, ainda que em novas embalagens, assim como devemos focar no aprendizado com iniciativas bem-sucedidas, aqui e lá fora.

Nesse sentido, o paradigma da economia descarbonizada se coloca como muito benéfico ao Brasil, que tem know-how em bioeconomia e acervos ambientais que lhe permitem assumir um lugar entre os protagonistas desta nova era. Temos a tarefa de enfrentar efetivamente as criminalidades que assolam os nossos biomas de forma nunca vista e muito crítica – aqui, um outro viés desafiante para a Nação.

As demandas nos campos da infraestrutura e da digitalização também se colocam como um espaço de oportunidades, desde que se construa uma boa regulação com segurança jurídica e se avance nas reformas estruturantes inadiáveis, alcançando o sistema tributário e as máquinas governativas, por exemplo.

De toda sorte, se não garantirmos a normalidade institucional e democrática, estará comprometida a execução de nossas tarefas urgentes, com a transformação de potencialidades em oportunidades. Além disso, teremos uma nação dilacerada no coração de sua alma, que são as garantias republicanas e seus preceitos de liberdade. Sem falar na piora da imagem internacional do País, algo gravíssimo num mundo conectado.

Assim, que ecoe a voz do Brasil que acredita que podemos e merecemos ir além do que já fomos em 200 anos. Que seja retumbante o não aos retrocessos: Democracia ou democracia! (O Estado de S. Paulo – 06/09/2022)

Paulo Hartung, economista, presidente-executivo da IBÁ, membro do Conselho Consultivo do Renovabr, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010/2015-2018)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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