Se a gente parar para pensar na educação brasileira nos últimos anos, o termo mais próximo é tragédia.
O governo Bolsonaro começou com um ministro indicado por Olavo de Carvalho, dentro do espírito de guerra cultural. O general abandonou o campo de batalha bem rápido. Em seguida, tivemos Abraham Weintraub atirando para todos os lados, mas atingindo principalmente o idioma e a cultura. Foi embora para os Estados Unidos. Surgiu, também, Carlos Decotelli, que nem chegou a assumir, derrubado por turbinar o currículo com informações falsas. Finalmente, tivemos o pastor Milton Ribeiro. Santo homem. O único que aparece em fotos na Bíblia, possivelmente com preços superfaturados.
Tudo isso seria apenas uma triste sucessão de erros. Ocorre que seu enredo se desenrolou durante uma pandemia.
Durante um longo período, todas as escolas brasileiras se fecharam. A transição para o ensino virtual foi penosa e incompleta. Os que tinham os equipamentos necessários não estavam totalmente preparados. Os que não tinham acesso à internet continuaram de fora, principalmente porque o governo se opunha a uma ampla inclusão digital.
Não sou especialista em educação, mas pesquisa do Insper e do Instituto Unibanco detectou uma queda de 80% no rendimento dos alunos nas escolas públicas durante a pandemia.
No contato com as crianças de escolas particulares, com conexão razoável, é possível, apesar disso, sentir que houve uma perda sensível.
Enquanto o impacto da pandemia ainda se desenrolava, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, prosseguia o embate ideológico, marco da gestão Bolsonaro, e, ao mesmo tempo, abria caminho para os pastores faturarem dinheiro e ouro pela sua intermediação.
Dois momentos desta guerra ideológica acabaram atingindo gays e crianças com necessidades especiais. No primeiro caso, o ministro afirmou que os gays eram produto da falta de atenção do pai e da mãe: “(O adolescente) nunca esteve com uma mulher de fato, com um homem de fato. (…) São questões de valores”. O caso foi parar na Justiça e Ribeiro, condenado a pagar R$ 200 mil de indenização. Mas, afinal, expressou a posição de seu governo e de alguns aliados internacionais, como Vladimir Putin.
No caso de crianças com deficiência, disse que não queria que atrapalhassem o aprendizado das outras. Declarou-se contra o “inclusivismo”.
É difícil de determinar num pensamento como o de Ribeiro se há apenas preconceito religioso ou se ele se entrelaça com ideias de extrema-direita: uma posição que, em casos mais radicais, não é apenas contra inclusões, mas adere facilmente a um tipo de purificação nazista do passado, ou mesmo das teses de limpeza étnica que vigoram recentemente.
Interessante que todo este mundo reacionário não caiu pela sua velhice e inadequação no mundo de hoje. Caiu por denúncias de corrupção.
Não é tão simples assim um governo surfar na onda anticorrupção e terminar engolfado por denúncias. Um ministro do Meio Ambiente já caiu por denúncias de se associar a madeireiros ilegais. As histórias de Bolsonaro e seus funcionários fantasmas não cessam de puxar sua perna, como o fazem todos os bons fantasmas.
Os inquéritos sobre a família Bolsonaro, filhos e ex-mulher, apontam com seriedade para o uso de rachadinhas. A simples análise dos bens da família indica que se fixaram em imóveis e foram crescendo de forma muito rápida para quem depende apenas de salário.
Uma pesquisa divulgada esta semana indica que 55% dos brasileiros esperam um aumento da corrupção. Estão certos. Esse número deve crescer muito porque muitos brasileiros não sabem muito bem que existe um orçamento secreto e que o Centrão tem mais recursos para investimento que o próprio governo federal.
Este tema da corrupção talvez não prospere num momento de tantas dificuldades econômicas. A maioria quer saber de preços mais razoáveis da comida, de salários e empregos.
Na verdade, existe ainda um tema que também não é tão discutido no Brasil, mas que merece uma análise especial. O governo Bolsonaro se abriu para a atuação de pastores evangélicos. Tudo indica que a concepção de Estado laico esteja sob perigo. Isso já ficou claro quando Bolsonaro indicou um ministro “terrivelmente evangélico” para o STF e foi enfatizado pelo próprio discurso de André Mendonça e pelo êxtase religioso da primeira-dama no dia da escolha de Mendonça.
De todos os religiosos, só os evangélicos têm uma bancada na Câmara e atuam com um nível de unidade superior ao da maioria dos partidos políticos.
O episódio dos pastores que pedem propinas em ouro e dinheiro não deveria ser apenas uma preocupação de quem defende o Estado laico. Os próprios evangélicos, ao caírem de cabeça na política, parecem não ter percebido como isso pode corroer no longo prazo a sua influência religiosa. No Brasil polarizado politicamente, muitos se comportam como religiosos, ignorando os erros dos seus líderes. Mas, ao longo do tempo, essa fidelidade ilimitada acabará sendo atingida pela sucessão de fatos reais.
De qualquer forma, num país onde educação e cultura se tornaram terra arrasada e uma visão religiosa domina as principais correntes políticas, é possível afirmar que, à nossa maneira, vivemos tempos sombrios. (O Estado de S. Paulo – 01/04/2022)
FERNANDO GABEIRA, JORNALISTA