Luiz Carlos Azedo: Moro joga a toalha; Doria, ainda não

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Quinta-feira movimentada no xadrez das eleições presidenciais. O ex-juiz da Lava-Jato Sergio Moro deixou o Podemos e se filiou ao União Brasil (PSL+DEM) para ser candidato a deputado federal por São Paulo, como “puxador” de votos da legenda. Depois de um acesso de fúria na quarta-feira, no qual denunciou a traição dos aliados e ameaçou permanecer no cargo, o governador de São Paulo, João Doria, ontem, manteve sua candidatura a presidente da República. Na despedida de ministros que deixaram os cargos para disputar as eleições, o presidente Jair Bolsonaro defendeu a ditadura militar e voltou a atacar o Supremo Tribunal Federal (STF). Vamos por partes.

A surpreendente decisão de Sergio Moro, que desistiu da candidatura à Presidência e trocou o Podemos pelo União Brasil, muda o cenário eleitoral em favor do presidente Jair Bolsonaro. O projeto de Moro sempre foi tomar os votos dos eleitores de Bolsonaro descontentes com sua atuação à frente do governo federal. No primeiro momento, no auge da pandemia de covid-19 e da recessão, o projeto parecia ter consistência, mas Bolsonaro mostrou-se muito resiliente e manteve sua base eleitoral mais ideológica.

A franja capturada por Moro, cuja narrativa sempre esteve centrada na bandeira da ética, não se sobrepôs à força de agregação do governo como forma mais concentrada de poder. Como Bolsonaro está com sua vaga no segundo turno quase garantida, frustraram-se os planos de Moro, em especial porque esse cenário dificultou ainda mais o apoio interno no Podemos, cuja bancada de senadores se tornou refratária à candidatura. Com Álvaro Dias candidato ao Senado e o ex-procurador Deltan Dallagnol à Câmara, no Paraná, a melhor opção para Moro passou a ser disputar uma vaga de deputado federal em São Paulo, para ser o mais votado do Brasil. A possibilidade de ainda ser candidato a presidente da República, aventada no comunicado que Moro distribuiu, é mera formalidade.

Incêndio no ninho

Doria deixa o governo de São Paulo sob um ataque de piranhas. Na cena em que reafirmou a intenção de ser o candidato a presidente do PSDB, no Palácio dos Bandeirantes, na qual erguia o braço do presidente do PSDB, deputado Bruno Araújo (PE), era ostensivo o constrangimento: nos ritos eleitorais, deveria ser o contrário. Em nenhum momento Araújo sorriu, pois é um dos dirigentes da cúpula do PSDB que sonham com a desistência de Doria, para que o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo leite, derrotado nas prévias pelo governador paulista, venha a ser, de fato, o candidato da terceira via.

Foram 24 horas de muita tensão interna no PSDB, a partir do momento em que Doria, numa reunião muito tensa, acusou o vice Rodrigo Garcia de conivência com as articulações para remover sua candidatura à Presidência. Essas articulações são lideradas pelo deputado Aécio Neves (MG), desafeto figadal de Doria, e outras lideranças tucanas, como o senador Tasso Jereissati (CE) e o ex-senador José Aníbal (SP).

Até aí, era jogo jogado, mas o governador paulista saiu do sério quando soube que a bancada paulista estava só esperando sua saída do Palácio dos Bandeirantes para entrar no jogo bruto contra sua candidatura. Foi aí que sobrou para Garcia, o vice-governador responsável pela articulação eleitoral em São Paulo, que também se comprometeu a bancar a candidatura de Doria à Presidência. É preciso ver para crer.

Bolsonaro na ofensiva

Tanto a desistência de Moro quanto as dificuldades de Doria ampliam a possibilidade de uma candidatura unificada da terceira via, porém, no momento, objetivamente, quem mais se beneficia dessa situação é o presidente Jair Bolsonaro. As pesquisas estão mostrando que o presidente da República começa a recuperar gradativamente sua popularidade, encurtando a distância em relação ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em tese, seria uma oportunidade para Bolsonaro acenar aos eleitores mais moderados, deixando de lado a radicalização do seu discurso político. Mas não é isso o que está acontecendo.

Bolsonaro, ontem, voltou a enaltecer o golpe militar de 1964, endossou a nota do ministro da Defesa, Braga Netto, que deixou o cargo para ser seu vice. E novamente atacou o Supremo Tribunal Federal, com declarações desrespeitosas: “Nós, aqui, temos tudo para sermos uma grande nação, para sermos exemplo para o mundo. O que falta? Que alguns poucos não nos atrapalhem. Se não tem ideias, cale a boca! Bota a tua toga e fica aí sem encher o saco dos outros! Como atrapalham o Brasil!”

Ontem, além de Braga Netto, deixaram o governo os ministros Tarcísio Gomes de Freitas (Infraestrutura); João Roma (Cidadania); Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos); Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), Onyx Lorenzoni (Trabalho), Flávia Arruda (Governo), Tereza Cristina (Agricultura), Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) e Gilson Machado (Turismo). Todos serão candidatos nas eleições. Alguns, a governador, como Tarcísio de Freitas e João Roma, em São Paulo e Bahia, respectivamente; outros, ao Senado, como Tereza Cristina, por Mato Grosso do Sul, e Flávia Arruda, por Brasília. (Correio Braziliense – 01/04/2022)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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