Reinaldo Azevedo: Carta de Bolsonaro é recuo tático; afinal, a cadeia o contempla

Contive uma furtiva lágrima ao ler a carta de Jair Bolsonaro, o golpista subitamente convertido à democracia. Quer negociar com o STF o calote nos precatórios? Está com medo do impeachment? Dado o contexto, parece certo que busca também se livrar da cadeia.

Quanto tempo demora para que o príncipe volte à condição de ogro? A verdade é que o governo, que nunca existiu, acabou. O que deu errado? Valeria uma enciclopédia. Mas aqui se tem espaço pouco maior do que o de uma fábula. Então vamos a ela, com direito à moral da história.

Quando Bolsonaro ofereceu ao mercado de ideias os seus 28 anos de Câmara, trazendo na bagagem a defesa de torturadores, a apologia de fuzilamentos, o elogio às milícias, a recomendação para que o pai espancasse o filho “gayzinho” e o conceito de que, na raiz do estupro, está o merecimento —uma distinção cabível só às belas—, os reacionários e iliberais das elites se encantaram. Na metafísica, estavam juntos. Mas restavam temores.

“Ele está certo, mas pode assustar!” A maioria é notavelmente autoritária e iletrada, mas não gosta de jogar dinheiro fora, muito especialmente porque o Estado é grande e poderoso o bastante para prejudicar os negócios no caso de uma aposta errada.

Mas como emprestar ao ogro as feições de um príncipe, de modo a mimetizar uma força modernizadora, apesar (voltarei a esse advérbio) daquele formidável currículo escrito nas catacumbas?

Foi então que se construiu a fabulosa teoria do casamento entre “conservadores nos costumes” com “liberais na economia”, que viria a substituir, como Paulo Guedes anunciou com a pompa ligeira de sempre, três décadas de social-democracia. Imodesto, o patinho feio, antes rejeitado por tucanos e petistas, alçado à condição de cisne, disparou ainda em outubro de 2018: “O Brasil tem 30 anos de expansão de gastos públicos descontrolados (…) Esse modelo econômico corrompeu a política, subiram os impostos, subiram os juros, nos endividamos numa bola de neve”.

Mandavam-se para o ralo, por exemplo, o Plano Real, a construção do SUS, a tímida —mas significativa para padrões nativos— redistribuição de renda dos governos petistas. Adicionalmente, ignorava-se quanto da “bola de neve da dívida” era, na verdade, apropriação privada de dinheiro público. E os maiores apropriadores estavam entre os entusiastas do novo arranjo.

Nascia a estrovenga meticulosamente projetada para não voar. Vá lá: se não reconheço em Guedes um formulador de política econômica, admito que é um competente prestidigitador de generalidades. Atuou, por um bom tempo, como animador de festinha infantil dos mercados.

Ainda que Bolsonaro juntasse a graça da “fortuna” (a sorte) aos dons do pensamento (a “virtù”) —condição posta por Maquiavel para o triunfo d’O Príncipe—, o arranjo estaria destinado ao naufrágio porque a imaginação econômica de Guedes contemplava, numa das mãos, o desmonte radical do que já não passa de mero arremedo de bem-estar social, mas que nos livra, ao menos, da guerra de todos contra todos. Com a outra mão, achou que poderia tirar alguns privilégios daqueles apropriadores da riqueza pública que sustentaram a postulação do “Mito”.

Chegou a hora de voltar ao advérbio “apesar”, conforme o anunciado. Se os mercados conseguem conviver com o vômito cotidiano de reacionarismos, não comportam nem suportam o golpismo que abandona a retórica para ir às vias de fato. A tal “modernização, apesar de Bolsonaro” era, como na música do Molejão, “cilada”.

Agora vem a cartinha do aluno aprendiz das instituições, ainda que o redator seja ignorante em gramática e meta vírgula entre o sujeito e o seu verbo. O impeachment passou a ameaçá-lo. Ele precisa do calote nos precatórios para bombar o Bolsa Família e a reeleição passou a ser a única chance de não terminar no xilindró. Além de “prisão, morte ou vitória”, também havia o recuo —o tático ao menos.

Em Platão, o príncipe se revela um ogro. No “Shrek”, o ogro se revela um príncipe. Na vida real, as coisas são diferentes. A moral da fábula vem agora: os meios qualificam o fim. Isso explica por que deu errado. E não há carta que possa mudar o feito. (Folha de S. Paulo – 10/09/2021)

Reinaldo Azevedo, jornalista, autor de “O País dos Petralhas”

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