A resposta hiperbólica da Corte aos ataques tem custos institucionais, mas se tornou inevitável
Escrevi, logo após a posse de Bolsonaro, que o STF não atuaria como “onze ilhas” mas “um continente”. A conjetura mostrou-se acertada. A sintonia na corte tem sido expressiva: “O que nos une é a defesa da democracia”, afirmou o ministro Luís Roberto Barroso, em painel recente, no que foi secundado por Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes.
Sim, tem sido notável o deslocamento do ativismo processual no controle da corrupção para a contenção do Executivo. A intensa disputa interna no STF era o foco de analistas de sua atuação como corte criminal. O suposto hiperprotagonismo era sobretudo reação ao mensalão e à Lava Jato. A agenda deslocou-se, sob Bolsonaro, da responsabilização criminal para a defesa das instituições.
Minha conjetura, em fevereiro de 2019, era que a pauta iliberal do governo encontraria uma virtual unanimidade antagônica no STF: “A era das dissensões parecerá a um observador do futuro ter ficado no passado: a corte atuará coesa pelo menos até a nomeação dos substitutos de Celso de Mello e Marco Aurélio”.
A arbitragem constitucional atual é inédita. Em 1958, Afonso Arinos observava: “Nunca o Supremo Tribunal Federal pôde exercer a sua missão específica de árbitro da legalidade, contendo os excessos do Executivo”. Seu juízo era implacável: “A instituição, em seu conjunto, naufragou historicamente, na fraqueza, na omissão e no conformismo”.
Exatos 30 anos depois, Sérgio Abranches apontou o que chamou de dilema institucional do presidencialismo de coalizão: a inexistência de uma instância de arbitragem dos conflitos entre os Poderes: “Nos EUA, a Suprema Corte tem poderes que lhe permitem intervir nos conflitos constitucionais entre Executivo e Legislativo. No Brasil da República de 1946 e no Brasil pré-constituinte da Nova República, precisamente os casos mais claros de presidencialismo de coalizão, este mecanismo inexiste”.
Mas há no atual padrão de atuação algo inteiramente novo: não se trata apenas de arbitragem entre Legislativo e Executivo. O Judiciário enquanto instituição está sob ataque. E isto implica em padrão de atuação mais que reativo. Agora sim, o STF está se tornando hiperprotagonista. Sua defesa da democracia tem sido robusta; a cacofonia resultante expressa esta fortaleza.
A omissão atual do PGR alimenta o hiperprotagonismo do STF porque aquele órgão detém poder de “gatekeeping” (controla a iniciativa). O atual dilema para a corte é que o perfil de agente passivo de arbitragem não dá mais conta face às investidas virulentas e inéditas do Executivo. Mas a resposta hiperbólica resultante tem custos elevados para para o STF, em um crescendo. Eis o nosso dilema institucional atual. (Folha de S. Paulo – 30/08/2021)
Marcus André Melo, Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)