Não há ataque nenhum às Forças Armadas na fala do presidente da CPI
O mais forte só precisa de pretextos, não de fatos. Ainda que o cordeiro, na correnteza, mate a sua sede alguns metros abaixo, o lobo o acusa de sujar a sua água. Desmentido pela física, evoca questões de honra: “Você falou mal de mim!”. E o sanguinário reaça engole aquele que apostou na ciência e no argumento.
Dada a pusilanimidade da nota emitida na quarta, o ministro da Defesa e os três comandantes militares podem, sendo do seu gosto, entrar nesta fábula da fábula na pele do lobo, mas me parece que estão a ver cordeiros onde não os há. Esse filme já passou. Ameaçar com golpe é fácil. Dá-lo nem é tão difícil. A questão está em como mantê-lo. Seria o caminho mais curto para a cadeia. Melhor uma aposentadoria rechonchuda.
A resposta dada pelos fardados ao senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da CPI, foi, obviamente, truculenta, golpista e esquizofrênica. Leiam este trecho: “As Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”. O que quer dizer? Que elas podem botar as tropas nas ruas contra o “golpista” Aziz, em nome da democracia?
Em 1968, o lobo queria comer todo o oviário. Um dos signatários do AI-5, Jarbas Passarinho, cravou a frase histórica: “Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência”. E justificou a “ditadura escancarada” liderada por Costa e Silva. Na ata, a expressão “às favas” foi substituída por “ignoro”. As tiranias costumam ter pudor vocabular. Só não têm escrúpulos de consciência.
Havia meia dúzia de gatos pingados a sonhar no Brasil com um levante armado e uma futura ditadura comunista. Nada que uma democracia não pudesse enfrentar —como se viu em alguns países da Europa na década de 1970— ou que o regime inaugurado em 1964 por aqui, que já era de força, não tivesse como debelar.
Mas sabem com é. A paixão sanguinolenta estava com fome. A 3 de setembro de 1968, o deputado Márcio Moreira Alves protestou pelo segundo dia consecutivo contra a invasão da Universidade de Brasília pela Polícia Militar, que se deu com incrível truculência.
Propôs que pais e mães impedissem seus filhos de desfilar no Sete de Setembro. Mas não foi esse o trecho que mais incomodou. Alves incitou as mulheres a uma espécie de “Lisístrata” do civismo —alusão aqui à peça de Aristófanes que trata de uma greve de sexo feita pelas mulheres.
Afirmou: “Esse boicote pode passar também às moças, àquelas que dançam com cadetes e namoram jovens oficiais”. Seria preciso fazer hoje no Brasil com que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da Guerra dos Emboabas e recusassem a entrada à porta de sua casa àqueles que vilipendiam a nação. Recusassem a aceitar aqueles que silenciam e, portanto, se acumpliciam.”
Bater na ditadura já parecia inaceitável. Mas recomendar que as moças não namorassem os cadetes passava da conta, não? Os militares pediram à Câmara o que sabiam, de antemão, que não obteriam: a cabeça de Alves. E então usaram a “Lisístrata” caipira como um dos pretextos para o AI-5. Era conversa fiada. A ditadura arreganhada era o desdobramento natural do regime. O lobo não precisa de argumentos.
O que disse Aziz? “Os bons das Forças Armadas devem estar muito envergonhados com algumas pessoas que hoje estão na mídia. Porque fazia muito tempo (…) que o Brasil não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo. (…) Porque o Figueiredo morreu pobre; porque o Geisel morreu pobre (…). Uma coisa de que a gente não os acusava [os militares] era de corrupção. Mas, agora, Força Aérea Brasileira, coronel Guerra, coronel Elcio, general Pazuello… E haja envolvimento de militares!”
Não há ataque nenhum às Forças Armadas. Trata-se de uma crítica a maus militares, que estão fora do lugar. Daqui a pouco, serão 600 mil mortos. O país dos cemitérios e os discursos golpistas de Bolsonaro não ofendem o senso de honra dos fardados? Querem usar a fala de Aziz como a “Lisístrata” da hora?
Já não somos os cordeiros de antes. E não há lugar, na ordem das coisas, para a tirania dos lobos. Tenham mais pudor! (Folha de S. Paulo – 09/07/2021)
Reinaldo Azevedo, jornalista, autor de “O País dos Petralhas”