Democracias não morrem somente com tanques nas ruas
O escândalo revelado na CPI da Covid-19 sobre suspeitas de irregularidades na aquisição da vacina indiana Covaxin pode ser a pá de cal no desgoverno da morte de Jair Bolsonaro e seus muitos cúmplices. Já é passada a hora. Muito antes desse cruel esquema de corrupção vir à tona, já havia inúmeras razões para afastar e julgar o pior presidente eleito da nossa história. A justificativa do superpedido de impeachment, a ser protocolado nesta quarta (30) por opositores de um amplo espectro político, e que reúne pelo menos 21 possíveis crimes cometidos pelo presidente, não deixa dúvidas.
Já passamos do ponto de inflexão. A democracia brasileira está sendo minada e corroída por dentro de forma sistemática desde o primeiro dia deste governo. É imperativo protegê-la usando os instrumentos democráticos que ainda nos restam. Do contrário, corremos o risco de chegar a 2022 com instituições ainda mais enfraquecidas e desacreditadas, a ponto de não conseguirem resistir às investidas do populista-autoritário que tem como objetivo subvertê-las ou destruí-las.
Democracias hoje não morrem somente com tanques nas ruas. É evidente o perigo da estratégia combinada de armar até os dentes a base de apoio, politizar as polícias e instaurar dúvidas à lisura do processo eleitoral, alegando fraudes sem comprovação em eleições passadas e especulações sobre a eleição futura. Tudo pensado para justificar e incitar atos violentos iguais ou piores do que ocorreu nos EUA com a invasão do Capitólio.
Não se vê toque de recolher ou soldados patrulhando as vias, mas a perigosa quebra da regra basilar de hierarquia das Forças Armadas é evidente. Seja na participação impune do general Pazuello em ato político no Rio ou no inédito número de membros das Forças Armadas da ativa e da reserva em cargos políticos, usados como fiadores do governo.
A democracia brasileira desmorona um pouco toda vez que conselhos são extintos e que as decisões são tomadas por decreto, passando por vezes por cima das leis. As propostas de restrição da ação cívica, por meio de projetos de lei com pretextos antiterroristas e de controle do financiamento de organizações da sociedade civil, chegam com força a um Congresso debilitado com parlamentares que envergonham a nação ao atuar em prol do governo em troca de vantagens indevidas.
A instalação de censores nas Redações dos jornais da ditadura militar foi substituída, por hora, pela retórica agressiva e ameaçadora do próprio presidente contra jornalistas —em sua maioria mulheres. A subida de tom das últimas semanas mostra um governo acuado, que se enrola nos inúmeros fios soltos de tantos malfeitos, mas que ainda se considera intocável.
Por isso a importância central da CPI da Covid-19 no Senado. À necessária apuração da negligência e da má gestão do desgoverno durante a pandemia se somam as gravíssimas denúncias do deputado Luis Miranda e do seu irmão, o servidor público Luis Ricardo Miranda. Possivelmente as centenas de milhares de mortes evitáveis são resultado não apenas da falta de humanidade e da completa incompetência, mas também da ganância por propina.
Mesmo com todas as evidências, não podemos subestimar e achar que o governo ruirá sozinho. É preciso agir agora para conter a deterioração e estancar o sofrimento da população. Já sepultamos mais de meio milhão de pessoas pela Covid-19. É hora de impedir que Bolsonaro enterre, também, nossa democracia.
Vamos nos juntar nas ruas e nas redes. Apoie a convocação da Coalizão Negra por Direitos, Povo Sem Medo e Brasil Popular para os protestos no dia 3 de julho, e assine e compartilhe nas redes a campanha pelo #SuperImpeachment já. (Folha de S. Paulo – 30/06/2021)
Ilona Szabó de Carvalho, empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”