Fernando Gabeira: Golpe em doses homeopáticas

Quase todos os o recentes livros que tratam da ameaça à democracia nos últimos anos ressaltam que o golpe já não funciona como antigamente. Não mais pronunciamentos militares e velhos tanques desfilando pelas ruas empoeiradas. Os autores desses livros dizem que a democracia é golpeada por dentro e as instituições vão tombando progressivamente, de forma que quando as pessoas se dão conta o regime autoritário já se instalou no país.

Algo parecido está acontecendo no Brasil. Não me canso de denunciá-lo, correndo o risco de parecer exagerado.

A decisão do Exército de não punir o general Eduardo Pazuello, que subiu num palanque em manifestação pró-Bolsonaro, é um exemplo dramático desse processo. As Forças Armadas foram seduzidas pelo governo e inundaram os cargos públicos federais. Agora, o Exército rasga seu estatuto disciplinar para, segundo alguns, não criar uma crise maior com Bolsonaro.

A participação na pandemia, ocupando o Ministério da Saúde com um general que ignora a doença, o SUS e a própria medicina, já foi uma demonstração de insanidade, complementada pela produção em massa de comprimidos de hidroxicloroquina nos laboratórios do Exército. Abrir mão do estatuto disciplinar é simplesmente capitular. Se a Bolívia quisesse o Acre e a França o Amapá, iríamos conceder o território só para não criar uma crise maior? No domínio simbólico, abrir mão da disciplina para agradar a Bolsonaro é ceder terreno moral, tão grave como abrir mão de território físico para não criar crises maiores.

Alguns importantes observadores garantem que as Forças Armadas não aderem a uma aventura golpista. Isso me lembra um pouco os argumentos da esquerda, que a cada batalha perdida dizia: não importa, venceremos a guerra. É uma tradução da crença religiosa de que, apesar de todas as quedas e dos sofrimentos, isso nos leva ao reino dos céus.

As coisas chegam já ao absurdo de termos como suspeita de difundir fake news e propaganda antidemocrática uma brigada de artilharia antiaérea. Supostamente deveria estar bombardeando inimigos externos, em caso de guerra, e não disparando tuítes contra adversários do governo, ou mesmo defensores da democracia.

Isso faz parte de um processo que a Procuradoria-Geral da República quer enterrar. Interessante observar como essa instituição também capitulou ao longo do tempo. Bolsonaro escolheu para sua chefia um nome que não estava na lista tríplice. Augusto Aras é um homem agradecido ao presidente e espera dele, na melhor das hipóteses, uma cadeira no STF e na pior, seguir com novo mandato em seu posto atual.

Durante a crise em que Bolsonaro impôs sua vontade ao Exército, dois pesados silêncios foram registrados no campo político. Os presidentes da Câmara e do Senado, ambos eleitos com apoio de Bolsonaro, nada falaram. Forças Armadas, dirigentes do Congresso, Procuradoria-Geral da República, quase como na Venezuela, está tudo dominado pela vontade presidencial.

Como se não bastasse, há o lento processo de sedução das Polícias Militares, que respondem afirmativamente aos acenos de Bolsonaro. Segundo relatos da imprensa, o próprio comandante da PM em Pernambuco ordenou a repressão a manifestantes. Em Brasília, um comandante da PM encerra seu discurso com o slogan do governo Bolsonaro.

Se levarmos em conta o discurso de Bolsonaro de que as pessoas devem ter armas para se rebelar contra governos e sua campanha de combate às urnas eletrônicas, é possível concluir que não aceitará derrota nas urnas. Pode-se pensar que isso seja um problema para 2022. Mas a verdade é que os fundamentos de um governo autoritário já estão sendo estabelecidos no Brasil. Uma política de terra arrasada na cultura, a sistemática destruição de nossos biomas e bandeira branca na porta das instituições, tudo isso já é um sinal de profunda decadência da democracia.

Em países como Israel e Hungria, por motivos diferentes, foi erguida uma frente única agregando forças até mais heterogêneas do que existem no Brasil.

No entanto, aqui ainda não há o sentido de urgência. Reina uma certa tranquilidade, muitos se dedicando aos projetos políticos próprios, sem levar em conta que a posição do Exército indicou uma inflexão radical na conjuntura. Poucos levam em conta que Bolsonaro usa dinheiro público para fazer sua campanha de reeleição. Suas viagens custam caro. Nos lugares onde se manifesta com seus motociclistas, a sociedade local também paga pela segurança. No Rio, os gastos da PM para protegê-lo foram de R$ 645 mil.

Enquanto muitos parecem aceitar silenciosamente esse destino, o governo avança e quer estender sua influência a outros campos. O bolsonarismo quer um novo técnico para a seleção de futebol, o general vice-presidente sugere que Tite deve treinar o Cuiabá.

Brevemente vão nos ensinar como viver. E aí talvez seja tarde demais para resistir.

Talvez fosse mais fácil contestar o governo sem a pandemia. Mas estamos no limiar da terceira onda e parece que Bolsonaro, com sua política sanitária devastadora, compreende a ambiguidade da situação: ao mesmo tempo que lhe rouba apoio político, o vírus retém as multidões em casa. (O Estado de S. Paulo – 11/06/2021)

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