Ivan Alves Filho, historiador
À memória de Vladimir Carvalho, um brasileiro raro.
Em matéria de cultura, tenho me deparado, pelo Brasil, com produções de grande valor.
Vamos tentar examinar isso de perto.
Na música popular, há violeiros notáveis, como Chico Curió, da histórica Tiradentes/MG,
autor de belíssimas valsas e modinhas, na linha da melhor tradição mineira. Como Helena
Meireles estava na linha das melhores tradições musicais pantaneiras. Ainda em Minas, como
não se maravilhar com o trabalho dessa imensa cantora Titane? A dupla Pena Branca e
Xavantinho recolheu o que o nosso cancioneiro tinha de melhor, em interpretações magistrais.
Outro violeiro de Minas Gerais com muita dedicação à música de raiz foi o estupendo Renato
Andrade. Roberto Corrêa também é um mestre mineiro. De certa forma, todos são filhos de
Tião Carreiro, de Montes Claros, norte do estado de Minas Gerais. Em São Paulo, temos
Renato Teixeira e suas lindas composições. No Mato Grosso do Sul, Almir Sater.
Infelizmente perdemos um grande nome, Rolando Boldrin: além de ator e compositor,
Boldrin apresentava um dos maiores programas culturais da televisão, o Sr. Brasil. A cantora
e pesquisadora musical Inezita Barroso também manteve um belíssimo programa na TV
Cultura, intitulado Viola, minha viola. Atilio Bari apresenta há anos o seu Persona, também
na TV Cultura. Imprescindível. No Rio de Janeiro, admiro ainda o talento de Eduardo Dusek:
sua interpretação de Serra da Boa Esperança é simplesmente antológica. E nunca podemos
perder de vista as referências. Ainda em forma, Eliana Pittman é uma referência e tanto para
minha geração e com ela participei uma vez de um programa na antiga TV Educativa do Rio
de Janeiro, Sem Censura. Tem o talento de uma Dalva de Oliveira ou de uma Elizeth
Cardoso. O mesmo eu diria da Alcione, a Marrom, e de Fafá de Belém. Isso, sem falar em
Clara Nunes, de vida tão breve. Uma pianista, cantora e arranjadora que também impressiona
pelo seu talento é Maíra Freitas, do Rio de Janeiro. Na Bahia ainda temos o Olodum, grupo
tão bem representado por João Jorge e Marcelo Gentil. Isso, sem aludir ao extraordinário
Elomar Figueira de Melo, baiano do sertão. Diana Pequeno é outra cantora excepcional e
também baiana de nascimento, assim como Virgínia Rodrigues. Todas essas pessoas citadas
acima na área da música resgatam uma tradição de qualidade que vem de Sílvio Caldas,
Orestes Barbosa, Noel Rosa, Nelson Gonçalves, Tito Madi, Lúcio Alves e Roberto Ribeiro.
Felizmente, ainda temos Caetano Veloso, Milton Nascimento, Fagner e Paulinho da Viola
para dar uma certa continuidade a isso, com suas vozes tão melodiosas e marcantes.
No plano da música de concerto, a ópera Molhem minha goela com cachaça da Terra!, de
Luiz Carlos Prestes Filho e Lucas Bueno, ambos radicados no Rio de Janeiro, é uma delas. A
peça musical se baseou em um livro de minha autoria, O caminho do alferes Tiradentes – uma
viagem pela Trilha dos Inconfidentes, o que muito me honrou. Creio que Villa-Lobos a
assinaria com muita honra e Arthur Moreira Lima, que nos deixou recentemente, a
interpretaria com o talento de sempre ao piano. A parceria deles com o maestro mineiro
Modesto Fonseca e a cantora lírica carioca Julia Félix tem rendido belos frutos. Ainda nesse
terreno da música de concerto, eu daria um destaque para o jovem violinista e pesquisador
Willer Silveira, tão dedicado à música sacra mineira. Das gerações mais novas, um músico
extremamente capaz é André Heller-Lopes, com quem gravei uma entrevista logo após o
lançamento do meu livro Brasil, 500 anos em documentos: na ocasião o maestro Heller-Lopes
declarou que a obra foi de fundamental importância quando da apresentação de um espetáculo
reunindo História do Brasil e trajetória musical do país. Fiquei honrado. Do Rio Grande do
Sul nos veio, há alguns anos já, o excelente violonista Yamandu Costa.
No tocante aos estudos folclóricos mais recentes, eu apontaria o livro Folclore Pombalense –
Reisado, do paraibano Luiz Barbosa Neto, um trabalho primoroso de resgate da cultura
popular religiosa entre nós. Os eternos mestres Edison Carneiro e Câmara Cascudo ficariam
orgulhosos. Festas populares, como o Carnaval carioca, o Círio de Nazaré e o Festival de
Parintins continuam a arrastar multidões. Ainda bem.
Uma grande descoberta eu fiz ao ler os poemas do professor mineiro José Antônio Oliveira de
Resende, reunidos no livro Recitais. Ou não somos a terra de Tomás Gonzaga, Castro Alves,
Fagundes Varela, Vinícius de Moraes, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade,
Thiago de Mello, Patativa do Assaré, Manoel de Barros, Ferreira Gullar e Paulo Leminski?
Outro escritor mineiro de muito valor é Ronaldo Guimarães: seu Pedaços de amor é um livro
para ser lido e relido sempre.
Ainda em Minas Gerais, mais precisamente em São João del-Rei, fiquei encantado com o
grupo de teatro de rua Balbúrdia, formado por jovens e competentes atores. O cinema
documental de José Carlos Asbeg é fundamental para a memória brasileira de hoje, ao mesmo
título que aquele de Vladimir Carvalho, Sílvio Back e Silvio Tendler. Sua série Palmares –
Coração brasileiro, alma africana é um verdadeiro tratado cinematográfico, um mergulho até
as raízes da nação. Todos esses documentaristas tinham por mestre o grande Humberto
Mauro.
Surgem, daqui e dali, no terreno editorial, iniciativas relevantes, tanto nos grandes centros – e
eu poderia citar a Contraponto, do Rio de Janeiro – quanto nos lugares menores – como é o
caso da Aquarius Produções Culturais, de Tiradentes/MG. De Brasília, a Fundação Astrojildo
Pereira vem nos brindando, há mais de duas décadas, com iniciativas editoriais de grande
qualidade, como que materializadas na revista Política Democrática, em sua versão impressa,
hoje infelizmente suprimida.
Nas Artes Plásticas, nomes como Aparecida Azedo e Rui de Oliveira vêm se colocando como
herdeiros dos grandes mestres forjados pelo Modernismo. Samuel Iavelberg é outra referência
para mim e suas fotografias feitas ainda no exílio, no decorrer dos anos 70, e seus trabalhos
sobre o samba e outras manifestações musicais populares, são registros admiráveis. Como
eram admiráveis as fotografias de Antônio Luiz Mendes Soares. O artesanato nacional
tampouco fica para trás em matéria de criatividade. O tiradentino Tião Paineira é exemplo
disso. No rio São Francisco existe uma comunidade composta apenas por mulheres
ceramistas, na localidade do Candeal. Eu lá estive quando de minhas andanças para escrever o
livro Velho Chico mineiro e fiquei impressionado com o espírito de iniciativa dessas artesãs,
organizadas em cooperativas desde o final do século XIX, conforme se pode ler nos relatos
feitos pelo geógrafo baiano Teodoro Sampaio. No Tocantins, tomei conhecimento, há alguns
anos, do belo trabalho artesanal que as mulheres do Jalapão desenvolvem com o chamado
capim dourado. Grupos de choro, corais e bandas se apresentam ainda em vários pontos do
país. Certas instituições de cultura, como centros culturais e fundações, algumas mantidas por
ONGs, lutam bravamente. Uma importante iniciativa nessa linha se concretizou com a criação
da organização Artesol, pela antropóloga Ruth Cardoso, em 1998, que reúne hoje exatas 522
associações de artesãos por todo o país. Quando, em 2001, cheguei ao Candeal, para conhecer
uma comunidade de ceramistas estabelecida ali desde pelo menos o final do século XIX, eu
me deparei com a presença de um alto forno para a preparação das peças. Segundo as
mulheres ceramistas me informaram, foi a Comunidade Solidária, projeto posto em prática
pela antropóloga Ruth Cardoso, que instalou o forno ali. Em tempo: segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, o Brasil alinha cerca de dez milhões de artesãos de todo
tipo, o equivalente à população da Suécia.
Na ensaística, temos nomes como Cristovam Buarque, Zander Navarro e César Benjamin e eu
aprecio muito a humanização da Ciência trazida pelo físico Marcelo Gleiser. Ele segue os
traços de outros grandes físicos brasileiros, como César Lattes e Mário Schenberg.
Fico na torcida para que essas produções, ainda dispersas, desembocam em movimentos
vigorosos, lembrando os trabalhos e movimentos coletivos realizados nos anos 40 e 60 do
século XX, sob novas roupagens. Esse era o período em que uma elite cultural (ou uma contra
elite, uma elite não financeira) passava acordos com os movimentos sociais para a construção
de um projeto de nação, cada vez mais necessário.
Vale dizer, culturalmente, o país busca se reorganizar – apesar do descaso e, mesmo,
desmonte, promovido por alguns governos, nos planos federal, estadual e, mesmo, municipal.
Ou seja, a sociedade civil busca resistir; ela é sempre maior do que o Estado. Alguém
sabe dizer quem governava o Brasil durante o levante comandado por Sepé Tiaraju, no quadro
das Missões Guarani, no Rio Grande do Sul? Ou quem estava à frente da Colônia durante a
luta comandada por Zumbi no Quilombo dos Palmares, em Alagoas atual? Quem mandava e
desmandava por aqui à época de Tiradentes e dos conjurados em Minas? Ou mesmo quando
Luiz Carlos Prestes deu início à sua Coluna, também na região missioneira do Rio Grande do
Sul? Um dos poucos grandes brasileiros que estiveram no poder, e mesmo assim por pouco
tempo, foi José Bonifácio, sendo preso e exilado após a Independência.
Decididamente, a sociedade civil se impõe. Aos trancos e barrancos, mas se impõe. Seja
como for, para um país que já teve quadros como Celso Furtado e Antônio Houaiss no
Ministério da Cultura, e Darcy Ribeiro e Cristovam Buarque na pasta da Educação, o
retrocesso é patente. Ao menos no plano da esfera estatal. Isso, para não aludirmos a titulares
de outros ministérios, como o do Trabalho, com João Goulart, Almino Afonso e Almir
Pazzianotto, o da Previdência Social com Antônio Britto, o da Saúde com José Serra e Jamil
Haddad, sem esquecer a contribuição de Alberto Goldmann nos Transportes, Alexis
Stepanenko no Planejamento, Raul Jungmann na Defesa e Tancredo Neves e Evandro Lins e
Silva na Justiça. Poucas semanas antes da derrubada de Jango Goulart, em 1964, Josué de
Castro estava cotado para ser o Ministério da Agricultura. Médico de profissão, ele chegou a
presidir a Organização Mundial da Saúde (OMS). No governo Jango, tivemos Doutel de
Andrade na liderança e, na administração de Itamar, Pedro Simon e Roberto Freire.
Decididamente, a contra elite fez muita falta ao Brasil nessas últimas décadas.
Para que se tenha uma ideia do estrago que acompanha a nossa Educação, basta dizer que um
terço dos professores da rede pública abandonou as salas de aula, em todo o país, nos últimos
anos. Assim sendo, renovar o Ensino Médio e a própria Academia, aproximando mais essas
instâncias da população, incentivar institutos, fundações, organizações da sociedade civil, se
revela fundamental. Cristovam Buarque defende, por exemplo, um Ministério da Educação do
Ensino Médio.
Nada contra o projeto de carreira, totalmente legítimo, mas, convém observar que, desde a
Conjuração Mineira, uma característica daquilo que a intelectualidade brasileira tem de
melhor repousa no engajamento e na busca por uma certa aproximação ou identificação com
os problemas da população. Os nomes nós os conhecemos. A cultura nacional brasileira se
forjou aí; é produto disso. Uma longa caminhada que vai do poema Marília de Dirceu, de
Tomás Antônio Gonzaga, aos poemas da obra Espumas flutuantes, de Castro Alves, e desta
obra aos Poemas dos Becos de Goiás, de Cora Coralina, e ao Poema Sujo, de Ferreira Gullar.
Dos trabalhos em História Natural de Frei Velloso aos de Alexandre Rodrigues Ferreira. Das
projeções de Aleijadinho às de Oscar Niemeyer. Das esculturas de Jesuíno de Monte Carmelo
às de Mestre Valentim, Abelardo da Hora e Alfredo Ceschiatti. Dos romances de José de
Alencar e Machado de Assis aos de Lima Barreto, Jorge Amado, Graciliano Ramos e
Guimarães Rosa. Dos azulejos de Athos Bulcão aos bonecos de Mestre Vitalino. Dos ensaios
críticos de Astrojildo Pereira, Agripino Grieco e Alceu Amoroso Lima às crônicas de Rubem
Braga, Cecília Meireles e José Carlos de Oliveira. Do teatro de Ariano Suassuna, Dias Gomes
e Oduvaldo Vianna Filho aos programas televisivos de Lima Duarte, Inezita Barroso e
Rolando Boldrin. Dos jardins de Burle Marx ao Plano Piloto de Brasília de Lúcio Costa. Das
apresentações de Cacilda Becker, Bibi Ferreira, Ruth de Souza, Oscarito, Grande Otelo, Deo
Garcez e Dina Sfat aos espetáculos presentes em nossos circos mambembes. Dos
documentários de Humberto Mauro, Rui Santos e Vladimir Carvalho aos filmes de ficção de
Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman e Glauber Rocha. Da ginga dos capoeiristas aos
dribles desconcertantes de Leônidas da Silva, Pelé, Garrincha, Zico e Ronaldinho Gaúcho.
Dos bordados e trançados populares às telas de Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Candido
Portinari, Djanira, José de Dome e Alberto Guignard. Das exibições musicais de Villa-Lobos
nos estádios de futebol da época às melodias de Xisto Bahia, João Pernambuco, Sinhô,
Pixinguinha, Ismael Silva, Noel Rosa, Lamartine Babo, Tom Jobim e Caetano Veloso. Das
experiências educacionais de Anísio Teixeira às iniciativas editoriais de Monteiro Lobato e
Ênio da Silveira. Dos estudos historiográficos de Capistrano de Abreu, Caio Prado Júnior,
José Honório Rodrigues, Ernani Silva Bruno e Nelson Werneck Sodré aos ensaios geográficos
de Milton Santos e destes aos trabalhos etnográficos e de corte sociológico do Marechal
Rondon, de Edgar Roquette-Pinto, Guerreiro Ramos e Darcy Ribeiro.
Nessa linha, como dissociar Vidas Secas, de Graciliano Ramos, da nossa sofrida condição
agrária? Ou o quadro Os Retirantes, de Portinari, que aponta para a mesma situação? Ou os
romances de Bernardo Élis e José Lins do Rego da luta pela sobrevivência em nossos sertões
e gerais? Ou o poema Operário em construção, de Vinícius de Morais, da realidade do
trabalhador da construção civil em nossas grandes e médias cidades? Ou ainda a batida
empolgante das baterias das Escolas de samba do Rio de Janeiro e do bloco Olodum de
Salvador da batalha mais geral pela afirmação da cultura negra brasileira?
A teoria nasce e cresce em contato com a prática. Mas também morre ao se afastar dela. O
mesmo se dá com a Cultura. Não quero dizer com isso que todos devam atuar
partidariamente, até porque há formas múltiplas e novas de atuação social. Quero dizer
apenas que a união da teoria com a prática, isto é, a práxis, tem uma força incomum,
metodologicamente falando até. O engajamento traz consigo uma energia fabulosa.
Finalmente, chego ao último ponto que desejo destacar em nossa trajetória. Isto é, ao caráter
de síntese presente em nossa cultura. Entre a dimensão tradicional e a moderna; entre o fator
erudito e o popular; entre a reflexão teórica e a participação política e, também, entre as
diferentes matrizes culturais. Autóctone no Brasil é a síntese, a mescla. A nossa cultura é
como uma árvore de tronco antigo e galhos novos. Afinal, a língua portuguesa possui 800
anos. Os mitos indígenas, alguns milhares de anos. O mesmo podemos dizer dos nossos
orixás. A síntese (isto é, os galhos) é que é nova, propriamente.
Daí insistirmos na recuperação da Cultura, como peça essencial da refundação do Brasil.