A pauta dos eleitores perdeu sintonia com a pauta humanista, mas as chamadas forças progressistas mantêm-se prisioneiras a um tipo de futuro que o presente faz impossível
É surpreendente como as sucessivas vitórias eleitorais da direita ainda surpreendem analistas e militantes de esquerda presos à antiga Era de Abundância, por não perceberem a pauta dos eleitores na Era dos Limites: visível no desequilíbrio ecológico, no esgotamento financeiro dos Estados, na pressão dos imigrantes, nas reivindicações das minorias, nos deficits previdenciários, na inversão da pirâmide etária com mais velhos e menos jovens.
Até recentemente, com os recursos que pareciam ilimitados na natureza e no Estado, a esquerda apontava na direção do aumento dos direitos sociais. Era possível receber imigrantes sem reduzir direitos já conquistados, aumentar o consumo sem pressionar desequilíbrios ecológicos para as gerações futuras, atender a crescentes benefícios previdenciários, respeitar minorias sem ofender a maioria. A migração em massa desarticula os direitos conquistados em décadas passadas, a crise ambiental não permite oferecer o mesmo padrão de consumo às gerações futuras, as finanças públicas desequilibradas não asseguram os recursos fiscais necessários para aposentadorias e outros benefícios. Com a consciência dos limites de recursos e o fim da ideia de abundância para todos, esses direitos e promessas ficam ameaçados, e o eleitor opta pela direita para defender privilégios com a mesma lógica que antes votava em propostas progressistas da esquerda para aumentar direitos.
O eleitor fica na direita porque mantém a mesma lógica democrática de usar seu poder soberano para construir de imediato uma sociedade melhor para si e seu entorno. Antes, era abrindo as fronteiras para as novas gerações. Originários de outros países, os estrangeiros, agora, já não cabem dentro das fronteiras nacionais: nem os estrangeiros geográficos que pedem para entrar; nem os estrangeiros sociais, os pobres do próprio país, que um livro de 2002 chamava de “instrangeiros”; nem os estrangeiros geracionais, jovens atuais e os que ainda vão nascer e precisarão evitar a hecatombe climática.
A pauta dos eleitores perdeu sintonia com a pauta humanista, mas as chamadas forças progressistas mantêm-se prisioneiras a um tipo de futuro que o presente faz impossível. A visão humanista olha o futuro da humanidade com ampliação de direitos para todos os seres humanos, não importa em que lado estiver da fronteira geográfica, social ou geracional. O discurso da direita fala para o presente e para a nação, com a manutenção dos privilégios, a garantia da ordem e dos costumes e ainda oferece paliativos sociais que acenam a uma utopia provisória, como carro elétrico que minora a crise ecológica sem resolvê-la e rendas mínimas que mitigam a penúria dos pobres sem superar a tragédia da pobreza, sem incorporar os “instrangeiros”.
A Era dos Limites criou um divórcio entre o humanismo planetário e futurista, e a democracia nacional e imediatista. O eleitor defende seus interesses locais e de curto prazo, mas a esquerda, em vez de inventar novas utopias, fica presa na nostalgia ideológica, até da necrofilia ideológica. Não oferece propostas para fazer a democracia avançar a alguma forma de “humanocracia” (voto nacional submetido a valores universais); não busca convencer o eleitor a entender os riscos ecológicos e morais da xenofobia e do imediatismo contra a humanidade e o futuro; nem desperta em cada indivíduo um sentimento de solidariedade com todos os seres humanos e com a natureza; não propõe uma alternativa à riqueza medida pelo PIB. Não entende que seu humanismo é recusado porque não atende à pauta dos eleitores com horror ao futuro, aos riscos, aos estrangeiros, às incertezas, à violência, ao crime, às mudanças no clima e nos costumes. No lugar de oferecer novas utopias convincentes filosoficamente e sedutoras eleitoralmente, a esquerda prefere ficar presa a ideias do passado ou cair no eleitoralismo, ou substituir a legítima vontade individualista e imediatista do eleitor pela vontade ilegítima de autocratas. No lugar de perceber o esgotamento de suas ideias, acusa o eleitor e a direita eleita.
A esquerda precisa entender as mudanças ocorridas, tratar as ideologias passadas como peças de museus intelectuais, do tempo anterior à Era dos Limites, e formular novos sonhos e propostas necessárias para ampliar direitos sociais e ecológicos a toda humanidade com apoio do eleitor nacional que não quer perder seus privilégios atuais em nome do futuro e da humanidade. (Correio Braziliense – 18/06/2024)
Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)