NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE
Na Amazônia, há mais de 100 poços de petróleo sendo explorados em terra, há décadas sem notícia de vazamentos
A polêmica sobre a exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas, que opõe institucionalmente a Petrobras, que pretende fazê-la, ao Ibama, que não autoriza, é nitroglicerina pura. Além de o ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, entrar em rota de colisão com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, arrasta para o contencioso o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, numa hora em que o eixo da política externa foi deslocado da economia sustentável para o tema da guerra e da paz.
A Petrobras pediu para explorar um campo com potencial de 14 bilhões de barris de petróleo a 175km da costa do Amapá, mas o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) negou licença à estatal na quarta-feira.
A pior coisa que poderia ocorrer ao governo, neste momento delicado da nossa política externa, em razão do posicionamento de Lula em relação à guerra da Ucrânia, é um desembarque de Marina do governo. Ela é a fiadora da credibilidade do país nos fóruns internacionais sobre o meio ambiente, que abriram as portas da política mundial para o presidente Lula, antes mesmo de sua posse, além de desbloquear os recursos financeiros para o Fundo Amazônia.
A defesa da Amazônia sempre foi uma bandeira da esquerda, muito mais pela ótica da integridade territorial e da garantia de suas reservas minerais; mais recentemente, em razão das populações ribeirinhas, dos seringueiros e dos indígenas, em defesa dos direitos humanos, com forte atuação da Igreja Católica. Talvez tenha sido o cacique Raoni o primeiro a sacar que a Amazônia já estava “internacionalizada”, ao deixar sua aldeia para correr o mundo ao lado do cantor Sting, em busca de solidariedade internacional à luta pela demarcação das terras indígenas.
Ex-seringueira, Marina seguiu essa trilha, principalmente depois do assassinato do líder seringueiro Chico Mendes. Quando ministra do Meio Ambiente, adotou uma agenda muito mais ampla, mas não perdeu o eixo da luta pela preservação da floresta em pé. Ocorre que a população da Amazônia hoje é estimada em 38 milhões de habitantes, que vivem, sobretudo, das atividades econômicas tradicionais, entre as quais a pecuária e a exploração mineral. Marina saiu do governo Dilma Rousseff por se opor à construção da represa de Belo Monte, no Rio Xingu, perto de Altamira (PA).
Há um choque tremendo entre as lideranças populares e indígenas da Amazônia, representadas por Marina e, agora, também pela ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e parte da elite política dos estados da Amazônia, que representa interesses econômicos e políticos tradicionais. Há também uma aliança tácita com madeireiros, garimpeiros, pecuaristas e grileiros na região, que agora também registra a forte presença dos traficantes de drogas.
O governo de Jair Bolsonaro agravou esse choque, ao estimular o desmatamento e o garimpo, bem como a invasão das terras indígenas. De certa forma, consolidou a internacionalização da Amazônia, por transformar o desmatamento numa “ameaça global”. Ninguém pode ser indiferente a essa nova realidade, muito menos o presidente Lula, que pretende solicitar à Petrobras novos estudos sobre a viabilidade da exploração de petróleo na foz do Amazonas, mais precisamente na costa do Amapá.
Pode virar mico
A posição de Lula é ambígua, disse que não emitirá licença para a Petrobras se houver riscos ambientais. Ao mesmo tempo, declarou que considera essa possibilidade remota, já que o ponto de exploração fica a mais de 500km de distância da foz do rio. Vale lembrar que o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, é petista de carteirinha. Foi senador pelo Rio Grande do Norte e está com o prestígio em alta, por ter adotado uma nova estratégia de fixação de preços da empresa, que reduziu os preços do diesel, da gasolina e do gás de cozinha.
Na Amazônia, há mais de 100 poços de petróleo sendo explorados em terra, há décadas. Não se tem notícia de vazamentos até hoje. No mar, já houve mais de 100 outras perfurações, também sem notícias de acidentes ambientais. Entretanto, essa é uma discussão técnica, como a probabilidade de aviões caírem. Quando acontece, é uma tragédia.
A discussão, porém, deve ter outra dimensão. Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), se queremos ficar próximos do objetivo de não aquecer a temperatura média do planeta mais do que 1,5° Celsius até 2100, mais de dois terços das reservas conhecidas de petróleo nunca poderão ser utilizadas. Um ciclo de exploração de petróleo em águas profundas, da prospecção à produção, leva até 20 anos para alcançar a rentabilidade desejada.
Até a margem equatorial do Amazonas iniciar produção, estaremos nos primeiros anos da próxima década. Países como a Arábia Saudita, que não têm florestas, venderão seu petróleo ao preço de quem sabe que o uso de petróleo vai acabar. Cada 0,1° Celsius a mais do que 1,5° Celsius custam trilhões de dólares em perdas econômicas, milhares de mortos por tragédia naturais e alto risco de colapso civilizacional. Abrir uma nova fronteira de petróleo em vez de investir no baixo carbono é visão de curtíssimo prazo e pode ser um mico financeiro colossal. (Correio Braziliense – 23/05/2023)