Luiz Carlos Azedo: “Quantum fortuna in rebus humanis possit”

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

A mudança da água para o vinho nas políticas públicas precisa ultrapassar os limites das intenções e ser efetivamente implementada

“Não ignoro que muitos têm tido e têm a opinião de que as coisas do mundo sejam governadas pela fortuna e por Deus, de forma que os homens, com sua prudência, não podem modificar nem evitar de forma alguma; por isso poder-se-ia pensar não convir insistir muito nas coisas, mas deixar-se governar pela sorte. Esta opinião tornou-se mais aceita nos nossos tempos pela grande modificação das coisas que foi vista e que se observa todos os dias, independente de qualquer conjetura humana. Pensando nisso algumas vezes, em parte inclinei-me em favor dessa opinião. Contudo, para que o nosso livre arbítrio não seja extinto, julgo poder ser verdade que a sorte seja o árbitro da metade das nossas ações, mas que ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase.

O 25º capítulo do clássico de Nicolau Maquiavel, O Príncipe, intitulado De quanto pode a fortuna nas coisas humanas e de que modo se lhe deva resistir (Quantum fortuna in rebus humani possit, et quiomodo illi sit occurrebndun, em Latin), trata fundamentalmente da relação entre a sorte (Fortuna) e as virtudes (Virtù) na política. O florentino alertava: “Disto depende, ainda, a variação do conceito de bem, porque, se alguém se orienta com prudência e paciência e os tempos e as situações se apresentam de modo a que a sua orientação seja boa, ele alcança a felicidade; mas, se os tempos e as circunstâncias se modificam, ele se arruina, visto não ter mudado seu modo de proceder.”

Maquiavel seria um bom conselheiro para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que completará amanhã 100 dias de governo: “Nem é possível encontrar homem tão prudente que saiba acomodar-se a isso, seja porque não pode se desviar daquilo a que a natureza o inclina, seja ainda porque, tendo alguém prosperado seguindo sempre por um caminho, não se consegue persuadi-lo de abandoná-lo. Por isso, o homem cauteloso, quando é tempo de passar para o ímpeto, não sabe fazê-lo e, em consequência, cai em ruína, dado que se mudasse de natureza de acordo com os tempos e com as coisas, a sua fortuna não se modificaria”.

A tentativa de golpe de Estado de 8 janeiro, quando a Praça dos Três Poderes foi tomada de assalto e seus palácios invadidos, foi o episódio mais emblemático das dificuldades do novo governo. A trégua nunca ocorreu. O fracasso dos golpistas favoreceu momentaneamente o presidente Lula, que recebeu o apoio do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF), da mídia e da opinião pública, porém, esse apoio começa a se desvanecer. Desde a primeira semana, o governo não teve paz.

Agora, é cobrado a apresentar um projeto para o país que não é o do PT. Nem poderia ser, porque a frente de esquerda formada por Lula liderou a oposição no primeiro turno, mas precisou do apoio do centro, principalmente no segundo, para derrotar Jair Bolsonaro. O sucesso do governo dependerá do apoio do Legislativo e do acerto de política econômica. Nesse quesito, ainda deixa a desejar. Os projetos legislativos do novo arcabouço fiscal e da reforma tributária, pré-condição para a retomada do crescimento e a viabilidade das políticas sociais do novo governo, ainda não foram encaminhados ao Congresso, por divergências dentro do próprio governo. E, sobretudo, desarticulação de sua base parlamentar.

Centro-direita

A mudança da água para o vinho nas políticas públicas, em comparação com o governo Bolsonaro, precisa ultrapassar os limites das intenções e ser efetivamente implementada. Sequer suas medidas provisórias já foram aprovadas no Congresso. Um exemplo de que não bastam as boas intenções é o recrudescimento do desmatamento na Amazônia e no Cerrado. A operação de resgate dos ianomâmis ameaçados de genocídio e a expulsão dos garimpeiros de suas terras, em Roraima, tiveram o mesmo efeito da reação aos golpistas de 8 de janeiro. Foram muito aplaudidas, o governo ganhou tempo, mas não bastam para manter as florestas em pé, em todos os biomas. É evidente que há uma reação de madeireiros, garimpeiros, grileiros e outros setores bolsonaristas.

A oposição se apresenta principalmente nas redes sociais. Lula precisa se convencer, seguindo os conselhos de Maquiavel, de que não pode governar apenas com a sua estrela, nos dois sentidos, e os louros do passado. As contingências são desfavoráveis. Setores que apoiaram Lula no segundo turno, alguns até no primeiro, começam a se sentir pouco representados pelo governo. Além de Bolsonaro ter o engajamento de 30% dos eleitores, o centro começam a afiar espadas ou mesmo fustigar o novo governo. Cobram mais ações em sua direção. Começa a se armar uma ampla aliança de centro-direita em oposição ao governo e ao programa estatizante do PT. Velhos desafetos e ressentidos que apoiaram Lula por gravidade já rasgaram a fantasia. (Correio Braziliense – 09/04/2023)

Leia também

Queda de braço que vale R$ 110 bilhões

NAS ENTRELINHASPacto com o Supremo é negado nos bastidores...

O padrão a ser buscado

É preciso ampliar e replicar o sucesso das escolas...

Parados no tempo

Não avançaremos se a lógica política continuar a ser...

Vamos valorizar a sociedade civil

Os recentes cortes promovidos pelo Governo Federal, atingindo em...

Petrobrás na contramão do futuro do planeta

Na contramão do compromisso firmado pelo Brasil na COP...

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!