Felipe Salto: Sugestões de reforço ao arcabouço fiscal

Não é um mal em si permitir o rompimento da meta de primário, desde que a sanção seja de fato boa para produzir maior controle de gastos

O novo arcabouço fiscal nasceu pelo Projeto de Lei Complementar (PLP) n.º 93, de 2023. O plano é bom e poderá ajudar a melhorar as contas públicas. Contudo, há uma série de aprimoramentos que poderiam deixar o controle de gastos mais efetivo e reforçar a proposta apresentada pela equipe econômica.

A regra de gastos do PLP n.º 93 baseia-se na evolução das receitas líquidas de transferências a Estados e municípios, descontando-se também os recursos de dividendos pagos por estatais, a arrecadação de concessões e os royalties.

Se a receita líquida crescer a 0,9%, em termos reais, no acumulado em 12 meses até junho de 2023, então as despesas de 2024 só poderão crescer a 70% dessa taxa, ou seja, 0,63% em termos reais. A essa taxa real será adicionada a inflação projetada para 2023, que o governo informará no Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) em agosto. Se a inflação for de 6%, então a despesa crescerá esses 6% mais a taxa real citada.

Há dois problemas nessa mecânica proposta. Primeiro, a inflação utilizada para calcular a evolução real da receita líquida, no meio do ano, será a acumulada até junho, o que é economicamente errado (algo que já vinha também do antigo teto de gastos). Nessa ótica, a inflação será provavelmente de 4,2%. O segundo problema é usar a inflação projetada para o fim do exercício de modo a fixar as despesas para o ano seguinte. Esses dois erros criam uma diferença de índices de correção a elevar a despesa nominal estimada.

Para corrigir, o Congresso poderia propor que a taxa real da receita fosse calculada com base na inflação média. A alta real de 0,9% se transformaria numa queda real de 0,7%. Neste caso, como existe uma banda de 0,6% a 2,5%, a despesa não diminuiria, no ano que vem; seria aplicado o piso de 0,6%. Por sua vez, a inflação utilizada para calcular o gasto nominal de 2024 deveria ser a mesma do cálculo da receita líquida real. É verdade que há uma série de gastos indexados à inflação e, se ela aumentar até o fim do ano, as projeções de despesas acabariam pressionadas para 2024, enquanto a correção do limite estaria congelada pelo cálculo do meio do ano. Para resolver esse problema, poder-se-ia prever um mecanismo de atualização da correção circunscrito ao período de tramitação do Ploa no Congresso.

Outra sugestão: inserir medidas automáticas de ajuste para situações de iminente rompimento da meta de resultado primário. Elas seriam acionadas quando da avaliação periódica do Orçamento. Dois exemplos: congelamento de quaisquer ações que aumentem os gastos, tanto do Executivo como do Legislativo; e interrupção de programas de reajustes salariais.

Essa modificação complementaria a nova lógica introduzida pelo arcabouço fiscal, de permitir o rompimento da meta de resultado primário fixada na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). A saber, na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n.º 101, de 2000), o descumprimento da meta de primário não tem perdão, digamos assim. Pode ensejar crime de responsabilidade. É bom, por razões óbvias, ao estabelecer padrões rígidos e corretos de responsabilidade. Contudo, ao longo de mais de 20 anos de funcionamento do regime de metas de primário, governos de colorações partidárias diferentes optaram por propor mudança de meta na LDO ao Congresso quando vislumbravam risco. A meta era alterada e, em seguida, cumprida. O mesmo ocorreu por ao menos quatro vezes com o teto de gastos, mas com custo muito maior, já que dependeu de alteração constitucional.

A flexibilização trazida no PLP n.º 93 serve para permitir o acionamento de sanções. Se a meta, por definição, na lei, não pode ser rompida, como mostrei, não haveria como acionar restrições para o crescimento do gasto vinculadas a esse rompimento. Nenhum governante deixaria o ano terminar com a meta de primário estourada. Sempre, como aconteceu até aqui, enviaria um projeto de lei mudando a meta, com anuência do Congresso.

Assim, não é um mal em si permitir o rompimento da meta de primário, desde que a sanção seja de fato boa para produzir maior controle de gastos. A sanção proposta no PLP n.º 93 é reduzir o porcentual de 70% da taxa de variação real da receita líquida para 50%. Minha sugestão é que esse porcentual fosse fixado em 20%, restringindo mais o gasto no ano seguinte.

Então, quando e se o governo optasse por deixar de cumprir a meta de resultado primário ou mesmo se o contingenciamento de despesas discricionárias não fosse suficiente para garanti-la, a sanção dos 20% seria acionada. Na minha proposta, ele teria também de aplicar medidas restritivas já no ano corrente. A vantagem desse sistema em relação ao originalmente previsto na LRF é que ele contém plano B. Romper a meta de primário não levaria a um abismo fiscal, mas, sim, ao acionamento de medidas de ajuste fiscal críveis.

Essas são as minhas sugestões, a partir de um modelo que atendeu, no nascedouro, às expectativas gerais. Sem dúvida, afastou o risco de um cenário fiscal mais pessimista. O Congresso daria boa colaboração se, ao lado da equipe econômica, promovesse esses ajustes. (O Estado de S. Paulo – 27/04/2023)

Felipe Salto, economista-chefe e sócio da Warren Rena, foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo e o primeiro diretor-executivo da IFI

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. 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Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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