‘O Brasil voltou’ ao passado, mas precisa avançar ao futuro. Mesmo saindo do presente nefasto em que estávamos, voltar é um verbo conservador
Nestes 100 primeiros dias, Lula já prestou o imenso serviço de trazer o Brasil ao passado anterior a 2019, mas é preciso que acene para o futuro, sintonizado com o mundo adiante, tanto nos riscos quanto nos imensos desafios e oportunidades que surgem para o Brasil, o promissor depositário de recursos para a economia do futuro, baseada em dois capitais: população e natureza. Não temos outra liderança com a sensibilidade, carisma e capacidade de aglutinação do Lula, portanto, não podemos desperdiçar sua presidência apenas e voltar ao passado anterior, até porque o Brasil não estava bem. “O Brasil voltou” ao passado, mas precisa do slogan “o Brasil avança ao futuro”. Mesmo saindo do presente nefasto em que estávamos, voltar é um verbo conservador.
Apenas com o propósito de um passado menos mal que o presente não vamos construir a estrutura necessária para o futuro que desejamos e temos potencial: com eficiência econômica, equidade social, democracia política e sustentabilidade ecológica. Não basta o governo ser novo, ele precisa ser para os novos tempos adiante, com nossos principais recursos: os milhões de cérebros e a imensa biodiversidade que bem usados permitirão aumentar e distribuir a renda, abolir a pobreza, pacificar a sociedade, civilizar as cidades, dar bem-estar à população, oferecer sonhos e esperanças aos jovens.
Respiramos aliviados porque “o Brasil voltou” ao compromisso com a proteção do meio ambiente, mas não definimos como será o progresso sustentável, utilizando a riqueza da biodiversidade. Voltamos ao propósito do desmatamento zero, mas ainda não adotamos a ecologia como questão industrial. Nestes 100 dias, o governo não mostrou um Plano de Metas para a indústria do século XXI, baseada na ecologia e no conhecimento, a economia verde e digital.
Felizmente, Lula trouxe o país de volta do Auxílio Brasil para o Bolsa Família, mas não apresentou a estratégia de como e quando nenhum brasileiro vai precisar de ajuda para sobreviver. O Bolsa Família já tem quase 30 anos, desde que começou no governo do PT no DF; 20 anos desde que FHC levou para o Brasil; mais de 15 desde que foi transformado em Bolsa Família, em 2004, dois anos como Auxílio Brasil. Tomada isoladamente, essa transferência de renda reduz a penúria, mas não elimina a tragédia da pobreza. O futuro exige que esse programa carregue a semente de sua obsolescência, ao ser parte de uma revolução pela educação: a implantação de um Sistema Único Nacional Público de Educação de Base, com a máxima qualidade para todos, independentemente da renda e do endereço da família. Esse seria o rumo para a erradicação da pobreza de forma estrutural e não apenas conjuntural por bolsas e auxílios que os próximos governos poderão acabar por revogação política ou por desvalorização monetária.
“O Brasil voltou”, mas falta proposta de como, ao longo dos próximos anos e décadas de seu governo e dos seguintes, o Brasil vai elevar a produtividade, criar emprego, assegurar que todos terão acesso a água, esgoto, paz nas ruas, moradia, transporte público de qualidade. E a garantia de que isso será feito sem concessão à pior inimiga dos pobres: a inflação.
Em 100 dias não se constrói uma década, mas é possível sinalizar rumos e inspirar cinquenta anos. Graças a Lula, “o Brasil voltou” à democracia e recuperou antigos programas sociais, mas precisa definir para onde e como avançaremos a novos tempos e ambições. (Veja – 15/04/2023)
Cristovam Buarque é escritor e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB). Foi senador, ministro da Educação e governador do Distrito Federal