Luiz Gonzaga Belluzzo: Considerações sobre política monetária

As certezas das políticas de metas abriram as portas para o descaso com o uso de outros instrumentos

O regime de metas, dizem os entendidos, tem o propósito de definir a regra ótima de reação do Banco Central. Trata-se da regra que, ao longo do tempo, fortalece a confiança dos mercados no manejo da taxa de juros de curto prazo entregue à responsabilidade dos BCs. Ao adequar suas decisões às expectativas (racionais) dos formadores de preços e dos detentores de riqueza, os bancos centrais tornariam mais suave o processo de manutenção da estabilidade do nível geral de preços, reduzindo a amplitude das flutuações da renda e do emprego.

No livro “Interest and Prices”, um dos luminares do regime de metas, Michael Woodford, recomenda: o regime de metas deve almejar a estabilização dos preços que são reajustados com pouca frequência (sticky prices). Flutuações mais intensas nos preços sujeitos a ajustamentos frequentes ou choques de oferta atípicos devem ser excluídas dos modelos que adotam o regime de metas de inflação.

Diz Woodford: “Um regime apropriado de metas deve descartar as flutuações nos preços dos ativos (financeiros)… A teoria sugere também que nem todos os bens são igualmente relevantes. Os bancos centrais deveriam adotar a meta de estabilização do núcleo da inflação (core inflation), o que coloca maior ênfase nos preços mais rígidos”, ou seja, menos sujeitos a choques de oferta.

A subida de preços nominais pode resultar de choques temporários nos preços das matérias primas e alimentos ou de um reajuste intempestivo de preços administrados. Choques de oferta devem ser tratados com cautela para não contaminar de forma adversa as expectativas dos agentes. A reação do Banco Central deve considerar também os efeitos negativos sobre a dívida pública e o déficit nominal originados por um “excesso” no manejo da taxa de juros de curto prazo.

O economista-chefe do Citigroup, Willem Buiter, mostra com clareza as dificuldades de execução da política de metas numa situação de dominância fiscal. Constata o óbvio: “A elevação da taxa de juros real causa o crescimento da dívida por duas razões. Primeiro, faz saltar o custo real do serviço da dívida. Segundo, ao reduzir a demanda de bens, serviços e de trabalhadores, a elevação do juro real provoca uma queda da receita fiscal e impede a obtenção do superávit primário”.

Na terça-feira, 28 de fevereiro, Andy Haldane, ex-economista chefe do Bank of England escreveu no Financial Times: “Até os economistas são capazes de amar. E eu amo as metas de inflação, estive envolvido em sua concepção e implementação no Reino Unido, e em vários outros países, por um período de mais de 30 anos”.

O amor de Haldane não é cego. Ele admite que grandes e duradouros choques de oferta global colocam os formuladores de políticas monetárias em um dilema. Eles toleram uma inflação acima da meta – em linha com a (in)ação inicial dos bancos centrais recentemente? Ou eles continuam a aumentar as taxas para combater os preços altos e pegajosos – em linha com sua subsequente (hiper)atividade? O caminho até agora viu os bancos centrais serem atropelados em ambas as direções, sem dúvida primeiro muito suave com a inflação e depois muito duro com a economia.

Há alguns anos, o pensamento compacto e invulnerável ao contraditório conferia conforto às certezas a respeito das políticas “corretas”. Hoje há quase unanimidade no repúdio à ideia de que bastava, em um ambiente de desregulamentação financeira, assegurar a estabilidade monetária, mediante a utilização de um regime de metas de inflação.

Depois da crise financeira, os economistas mais respeitáveis passaram a admitir que as certezas das políticas de metas de inflação abriram as portas para os descuidos com a supervisão das instituições e ao descaso com a utilização de outros instrumentos – hoje ditos macroprudenciais – já utilizados amplamente em outros tempos.

No momento glorioso da globalização, Cláudio Borio, economista do BIS, diante da inflação bem-comportada, sugeriu que “os fatores globais se tornaram mais importantes do que os domésticos”. Borio refere-se às transformações ocorridas nas condições da oferta na economia globalizada.

O mundo presenciou um cataclismo na divisão internacional do trabalho. A Ásia se tornou formidável produtora e processadora de peças e componentes baratos (sem exclusão dos bens finais). É no território dos asiáticos, de mão de obra barata, câmbio desvalorizado e abundância de investimento direto estrangeiro, que se produzem as novas manufaturas competitivas. Na China os preços de exportação caíram entre 1995 e 2007.

Nesse período glorioso, o mundo desenvolvido viveu as delícias da Grande Moderação. Assim os corifeus da globalização qualificaram o “choque positivo de oferta” ocorrido depois da estagflação deflagrada pela crise de “produtividade” dos anos 70 do século passado. Em sua evolução, o “novo regime de crescimento” impôs a liberalização financeira à maioria dos países, mas também impulsionou a metástase produtiva para o Pacífico dos pequenos tigres e novos dragões. Essas duas dimensões da chamada globalização garantiram a inflação comportada e, ao mesmo tempo ensejaram frequentes episódios de crise financeira no Centro e na Periferia.

Em artigo recente, Cláudio Borio discute as consequências da maior interdependência dos mercados financeiros “liberalizados”. A dita globalização, diz, acentuou o caráter procíclico dos sistemas financeiros e impulsionou a criação de desequilíbrios cumulativos entre credores e devedores – famílias, empresas e países – com sérias consequências para a eficácia das políticas monetárias nacionais.

Na opinião do economista do Bank of International Settlements, a questão central reside nas limitações da política monetária, enclausurada nas metas de inflação, diante da inclinação dos sistemas financeiros em desatar movimentos procíclicos. “Enquanto o sucesso da luta contra a inflação foi extraordinário, o mesmo não pode ser dito da estabilidade financeira. Desde a liberalização do início dos anos 80, observamos flutuações cada vez maiores na expansão do crédito e no preço dos ativos. Esses fenômenos desencadearam crises financeiras com consequências materiais para a economia real”. (Valor Econômico – 07/03/2023)

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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