Míriam Leitão: Entre os ruídos e a nova melodia

Governo precisa acertar o tom na economia, para que esses ruídos não atrapalhem a melodia que voltou a ser ouvida em diversos pontos de Brasília

Existem os ruídos e a melodia. É preciso alertar sobre os ruídos antes que eles desliguem a música que se ouviu de maneira tão forte aqui em Brasília nos últimos dias. Marina disse que a defesa do meio ambiente “não é uma forma de fazer, é uma forma de ser”. Silvio Almeida convocou cada um de nós para dizer que existimos e somos importantes para o Estado brasileiro. Os indígenas percorreram as salas da Funai, com cantos e chocalhos, tomando posse do que sempre foi deles. “Nada sobre nós sem nós”, disse Sonia Guajajara. Isso é música.

Brasília nesta transição de poder está tomada de emoção e está intensa. Posses, discursos, mudanças, declarações, conflitos, acertos e erros, tudo ao mesmo tempo. É um daqueles momentos em que a História se acelera. Toda a transição de poder tem seus fortes simbolismos, mas essa ocorre depois de um longo padecimento do país e de um ataque direto à democracia.

A Marina voltou. A posse dela não podia ser no auditório do Ibama porque era pequeno, pensou-se no CCBB e acabou sendo no auditório do Planalto, que também não foi o suficiente. Ela falou em “estancar a barbárie”. Não exagerava. É impossível esquecer que lá se sentou um ministro que sugeriu aproveitar a pandemia para destruir mais o meio ambiente. E o fez numa reunião naquele mesmo Planalto onde ontem se firmava o pacto de proteção das nossas florestas. O Fundo Amazônia voltou. O Conama voltou. O respeito aos servidores do Ibama, ICMBio, Serviço Florestal Brasileiro voltou. Isso é música.

No meio disso houve muito ruído nos últimos dias. Os combustíveis fósseis continuarão não pagando impostos aos cofres federais e isso tira deles mais de R$ 50 bi por ano se a medida for mantida. Não combina com um governo que promete combater a mudança climática e o déficit público. O ministro da Previdência defendeu a tese mais velha, mais equivocada e mais perigosa para o equilíbrio previdenciário que é dizer que o déficit não existe. O ministro do Trabalho diz que vai acabar com um dos poucos acessos do trabalhador ao seu dinheiro, suspendendo o saque-aniversário do FGTS. Deveria melhorá-lo. Hoje, quem faz o saque não tem acesso ao Fundo de Garantia durante dois anos mesmo se for demitido. Ontem, diminuiu um pouco o ruído que tem sido insistente de que o governo vai controlar o preço dos combustíveis. O governo deu sinais ruins nestes primeiros dias e de novo na economia. Sempre ela.

A economia não pode continuar sendo aquele lugar em que o PT erra quando coloca em prática as suas ideias. Para cumprir seu ideal de inclusão, de redução da pobreza, de combate às desigualdades, é preciso estabilidade econômica. Ontem, o governo negou que vá desfazer a reforma da Previdência. Isso não tem mesmo cabimento. Todos os governos, inclusive o primeiro de Lula, fizeram reformas na Previdência.

O vice-presidente, Geraldo Alckmin, ao assumir o Ministério do Desenvolvimento, prometeu unir inovação, inclusão social e sustentabilidade ambiental. Quer que o Brasil volte a ter uma indústria forte, mas que esteja mais integrada às cadeias globais de produção e aproveite o momento geopolítico mundial que pode abrir novas oportunidade de negócios. Isso parece música, se não bater nas ideias antigas de protecionismo e subsídio à indústria.

No domingo da posse, o mercado financeiro ouviu com desconfiança certas partes do discurso de Lula, que eram estranhas mesmo, e desabou no dia seguinte. O problema é que só ouviu o ruído. O jornal mais famoso do mundo percebeu a música. Na capa, o “New York Times” trouxe uma enorme foto da diversidade brasileira subindo a rampa. O jornal favorito do mundo das finanças, o “Financial Times”, ressaltou na primeira página que “Lula impõe controle mais rigoroso de armas e contém garimpo na Amazônia”. O mercado brasileiro tem visão curta, é verdade, mas é melhor interromper a sucessão de ruídos produzidos pela bateção de cabeças na área econômica. Esse será o assunto da primeira reunião que o presidente Lula convocou para amanhã.

O governo precisa acertar o tom, porque há muita coisa voltando ao lugar certo. Na Saúde, a ministra disse que as decisões serão tomadas com base na ciência, na Educação, o ministro terminou o discurso citando Paulo Freire. O Ministério do Meio Ambiente vai proteger a floresta, o das Mulheres defenderá as mulheres, o da Cultura vai promover a cultura. Tudo isso é música. (O Globo – 05/01/2023)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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